Camilo Irineu Quartarollo
Caros leitores e curiosos da Coluna, hoje participo um trecho do meu livro de 2017, Entre as perícopes, e sobre Nicodemos:
“Quando o rabino chega à cabana, o fariseu faz mesuras qual um árabe que não é, pois teme o desconhecido e senta-se outra vez na acomodação da cabana, as estrelas o espiam pela sucá (cabana de teto de galhos).
– Rabi, bem sabemos que é da parte de Deus, porque ninguém pode fazer os sinais que faz sem Deus.
Olha dos lados o velho perdido nas escrituras e, de memória, vê em sua frente o menino perdido no templo e Jesus conhece aquela aura. Cochicha:
– O que é mesmo preciso para entrar no reino de Deus?
Jesus o olha, enquanto o ancião se recompõe depois de se rebaixar a um rabino de aldeia, nascido de Maria e andejo do templo e arredores.
– É tempo de purificação! Então, para entrar no reino de Deus é necessário… nascer de novo, Nicodemos!
Nicodemos, dotado de uma honestidade intelectual, reage:
– O quê? Nascer de novo! Mas eu?…
Pois o primeiro nascimento de Nicodemos já lhe fora difícil a ele e à mãe – quase morrera no parto! Estudara, chegara a chefe dos fariseus… jogar tudo fora! Nascer de novo!?
– Ora, quem não nascer de novo não entrará no reino de Deus!
– mas, mestre?…
– Não se assuste, Nicodemos, e faço outra pergunta: qual a idade da alma tão sábia de um mestre em Israel, como você?
– Como pode ser isso, ora, a idade de minha alma!? – desanima-se Nicodemos.
– O que nasce da carne é carne, o que nasce do Espírito é espírito.
– Mas o homem cresce diante de Deus em sabedoria e força até torna-se velho – completou Nicodemos.
– Mais sábio por isso? Mais digno? Mais rico talvez, mas há velhos bem jovens e jovens bem velhos, Nicodemos. Um ano para Deus é como mil anos e mil anos como um ano de sua vida. O homem, a mulher, do nosso interior se renova em novos ciclos até que venha o dia do Senhor.
– Rabi, temos de pensar no nosso povo, somos dominados por estrangeiros.
– É mesmo, Nicodemos? Eles também terão de nascer de novo e já vem a hora de o Espírito renovar todas as criaturas e as coisas criadas.
– Rabi, eles virão e nos matarão, destruirão nosso templo, como fizeram outros povos antigos, como os babilônios e outros.
– Eles nos fizeram naquilo que somos, mas o que queremos ser? Se você não tem justiça com seu irmão, se você faz recair pesados impostos sobre os pobres, se você usa a fé para se enriquecer à custa de seus irmãos? Em que somos diferentes?
– Atualmente somos escravos de Roma.
– Somos escravos de nós mesmos, Nicodemos, do homem velho. Digo-lhe que para entrar no reino é preciso nascer de novo.
– Rabi… vamos orar.
Nicodemos cai em transe enquanto ora. Quando volta a si está sobre as folhas de palmeira que forra a tenda, em posição fetal e isso tudo se passa em segundos somente. Uma ternura, bem–estar e uma lágrima sem razão de quem não chora há muito. Uma lágrima bem gorda, que lhe remoça os olhos.”
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Camilo Irineu Quartarollo, escrevente, escritor, editor, diagramador, distribuidor de nove livros, dentre os quais Entre as perícopes