Cecílio Elias Netto
Às vésperas de completar 60 anos, decidi ingressar na Faculdade de Filosofia. Logo à primeira aula, o diretor da faculdade – ou coordenador, sei lá – me chamou à sua sala. Fui, tímida e apreensivamente, sabendo de minha condição de quase velhinho entre jovens. Aliás, foi lá que conheci a minha ex-mulher. De quem, aliás, me encantei primeiramente por ela – quase cinquentona – estar cursando Filosofia. Depois é que vieram outros encantos.
Se o presidente brasileiro souber, irá me chamar de xiita. Não fará mal. Ele não sabe o que é isso.
Pois bem. Lá me fui, à sala do diretor. O moço queria saber o motivo de meu retorno à faculdade. Tentando ser o mais moderninho possível, falei – pelo que me lembro – em “reciclar-me” em “reaprender a pensar”. O diretor – ou coordenador – fez algumas anotações, perguntou qual o meu tempo disponível para leitura. Respondi: “Não faço outra coisa: leio e escrevo, escrevo e leio.” Ele ficou quieto e, até hoje, não sei o porquê daquelas perguntas.
Foi-me, ao início, experiência dolorosa. Na primeira aula, quando o professor entrou, eu me levantei da cadeira para recebê-lo respeitosamente. Recebi uma sonora vaia dos colegas e me lembro do olhar experiente da colega, que viria a ser minha mulher, como que dizendo: “Não faça mais isso! São outros tempos.” Continuei fazendo. E os colegas cansaram-se de me vaiar. Acostumamo-nos uns aos outros.
Aconteceu, porém, que alguns professores começaram a fazer perguntas, testando os nossos conhecimentos. Aquela guerra terrível na Grécia, por exemplo. Respondi: ”Guerra do Peloponeso”. Fui novamente vaiado. Mas uma freirazinha – noviça, ainda – sussurrou-me ao meu lado: “Nossa, como o senhor sabe!” Era o início de meu suave calvário. Pois, conforme se passavam as aulas, percebi que praticamente tudo o que o curso ensinava eu havia aprendido ainda na minha adolescência, no colégio. Lógica aristotélica, silogismos, sofismas…
Entrei em crise, cruel dúvida existencial: se eu responder, serei vaiado pelos colegas; se não responder, os professores irão ter-me por um velho burro. Conformei-me. Mas eu sabia estar conhecendo a amarga realidade de um fiapo do ensino universitário do país. Todavia valeu, valeu-me muito. Mesmo porque admiti não ser quase nada aquele pouco que eu sabia.
Relembro-me, agora, dessas coisas por, na condição de escrevinhador, sentir-me em situação semelhante. Ando receoso de escrever. Para quem, a não ser para aqueles meus amigos velhinhos que me acompanham mais por hábito? E quais assuntos, que abordagem – se aquilo que me interessa ou preocupa pode não interessar ou preocupar as novas gerações?
Esta croniqueta, mesmo. Iniciei-a tentando retrucar a versões maléficas que se fazem contra o Iran. Quando me dei conta, estava contando uma história daquilo que acompanhei ainda na minha adolescência. E citando nomes de que apenas os setentões iriam se lembrar: Reza Pahlavi, Soraya, Fara Diba, Mosadegh, Gamal Abdel Nasser, Aga Khan, Ali Khan. Aliás – fosse como nas aulas de Filosofia – eu seria vaiado se contasse da repercussão do casamento de Ali Khan com Rita Hayworth. Quem? Sim, Rita Hayworth, a “mulher mais linda e mais desejada do mundo”, a eterna “Gilda”.
Na realidade, eu queria apenas lamentar o esquecimento de o Iran ser a antiga e a mágica Pérsia de nossos sonhos. A Pérsia das Mil e Uma Noites, de Sheerazade contando histórias para o rei, evitando ser morta. O Iran dos tapetes persas, tapetes voadores de contos que seduziram o Ocidente: Ali Babá e os 40 Ladrões, Aladim e a Lâmpada Mágica, Sinbad, o Marujo. A Pérsia dos mistérios, de Zoroastro, do deus Mitra, o deus Sol. A Pérsia, civilização que se formou há quase 7 mil anos.
Bem, escrevi. Se o presidente brasileiro souber, irá me chamar de xiita. Não fará mal. Ele não sabe o que é isso.
Cecílio Elias Netto, escritor, jornalista, decano da imprensa piracicabana; ([email protected])