Alê Bragion
A vida é crônica. Leva-se uma vida toda para vivê-la bem. Salvo, claro, quando trágicas exceções antecipam fatalmente o desfecho programado. Aí, temos na crônica da vida o que chamamos de crônica de uma morte anunciada. E ela acontece quando, na trama do viver, vemos, ouvimos ou temos crônicos pensamentos e ações que impedem o desenvolvimento retilíneo do curso da narrativa até seu desfecho natural. E isso é triste. Isso é mau. Pois no arranjo final entre personagens e enredos derradeiros, transformamos a crônica-vida em conto-mortal. Confundimos os gêneros, literários e reais, e misturamos as problemáticas do existir e do ficcionar até não podermos mais. Findo o ato final, fecham-se as cortinas já sem os atores no palco.
A vida é teatro. E não há novidade nisso. Os gregos já sabiam que a vida era dramaturgia fora das grandes arenas. Sabiam que a vida é uma peça sendo vivida na imensa arena terrena, sob aplausos e vaias de um público que é, ao mesmo tempo, ator e plateia. Por isso, os gregos escreveram como ninguém – talvez apenas Shakespeare os tenha alcançado – sobre as tragédias da vida humana e dramática. Édipo. Ifigênia. A força de um destino mediado por deuses não ocultos a testarem a pouca força de vontade humana a impulsionar e pulsionar os desejos e os erros. A vida é um teatro proibido para menores de idade. A vida é teatro de verdade, sem ingressos a serem pagos. Atua-se de graça. Apenas pelos aplausos finais ao fechar da cortina em forma de tampa.
A vida é poema. Há ritmo na vida. Como escreveu Cecília Meireles, há sangue eterno na asa ritmada, e um dia – sabemos – estaremos mudos, mais nada. Da poesia como da vida – ou da vida-poema – pode-se tirar tudo, menos o ritmo. Otávio Paz já afirmou que o ritmo é elemento básico do existir – pois sem ele encerramos nossos ciclos (das estações do ano, do dia-e-noite, o lunar e o do nascer-envelhecer). Como no poema, tudo o que vive tem ritmo. E, para termos ritmo, precisamos de intervalos – pois não é o ritmo senão a sequência intervalar de elementos opostos, como o som e silêncio, o forte e o fraco. O fim dos intervalos – como o fim do bip de um aparelho que marca as batidas do coração – é o fim da vida, apitando na curva da estrada o seu continuo e estridente nada. Piiiiii.
A vida é dança! Dançamos todos desde que nascemos. Já aos primeiros passos, seguram-nos um sem-fim de mãozinhas a nos fazerem rodopiar pela sala aos olhos de todos. Depois, ao cairmos de bunda no chão, recebemos nossa gratificação – transformada em palmas e risadas. Desse primeiro rodopio ridículo e primeira queda traumática, não paramos mais. Vamos dançando e caindo. Ora ao som de aplausos ora apenas vexados pela alegria ácida das gargalhadas alheias. E vamos. Rodando para não pararmos. Sozinhos, às vezes aos pares, outras vezes em trios ou mesmo em grupos. Dançamos um grande baile que não acaba nunca. Temos apenas poucos momentos de descanso – entre uma e outra troca de música ou de companhia. Até que, soada a primeira nota, a valsa volta ao centro do salão, como num romance de Milan Kundera.
A vida é música. Sobre tudo. Sobre todos. Saber ouvi-la é uma arte, difícil e necessária. Escutar seus sons, seus tons e semitons – apreciar cuidadosamente seus largos e allegros, seus adágios e prestos, e saber flanar em seus andantes – eis uma lição de apreciação estética. Separar a nota vibrante do jorro constante de meros ruídos. Equalizar na mente e nos ouvidos as vozes do coro humano a despejar sensações. A vida sem a música não faz o menor sentido – escreveu Nietzsche.
E se longa é a arte e breve é a vida, o truque é pensar a vida como arte – como arte-vida. Assim, imorreremos felizes para sempre na sempre eterna sala de exposições do tempo, na qual lá estão a se exibirem aqueles sobre quem – como escreveu Camões em Os Lusíadas – poder não teve a morte.
Escrever e inscrever a vida em toda parte. Esse é o mote. Será arte?
___
Alê Bragion, doutor em literatura, cronista desta Tribuna desde 2017