Armando Alexandre dos Santos
Prossigamos a análise do cap. 25 do Levítico, texto bíblico de fundamental importância, por meio do qual Moisés legislou para o Povo de Israel.
Depois de estabelecer que o sábado não devia ser um dia de trabalho, mas de descanso, consagrado ao Senhor; e de estabelecer que a cada ciclo de seis anos se seguisse um ano sabático, no qual a terra também descansasse; Moisés estabeleceu o ano do Jubileu, o 50º. ano ao cabo de sete ciclos inteiros de sete anos cada. Esse ano, santificado e consagrado de modo ainda mais marcado ao Senhor, era um ano de libertação. Nele, era ainda mais rigorosa a proibição do trabalho, eram perdoadas dívidas e até mesmo operações de compra e venda efetuadas desde o último Jubileu eram desfeitas, voltando as terras vendidas para os primitivos donos.
Além desses pontos, que já vimos no artigo anterior, o cap. 25 do Levítico também proibiu a usura e legislou acerca da escravidão. Vejamos o que diz, textualmente: “Se teu irmão se tornar pobre junto de ti, e as suas mãos se enfraquecerem, sustentá-lo-ás, mesmo que se trate de um estrangeiro ou de um hóspede, a fim de que ele viva contigo. Não receberás dele juros nem ganho; mas temerás o teu Deus, para que o teu irmão viva contigo. Não lhe emprestarás com juros o teu dinheiro, e não lhe darás os teus víveres por amor ao lucro. Eu sou o Senhor vosso Deus que vos tirei do Egito, para vos dar a terra de Canaã e para ser o vosso Deus.” (Lev 25, 35-38).
Fica, pois, declarado que existe um dever de caridade de sustentar os empobrecidos e os inválidos, instituindo assim algo que muito vagamente faz lembrar a moderna previdência social. Esse dever, o povo israelita no seu conjunto, e cada israelita em particular, tinha obrigação de manter, ou de contribuir para sua manutenção. Ficam também terminantemente proibidos os empréstimos a juros, bem como o lucro desonesto obtido por meio da exploração dos necessitados. A razão de tais prescrições foi apresentada no último dos versículos transcritos: os israelitas também já passaram necessidades no Egito e delas foram libertados pela bondade do Senhor; devem, pois ser misericordiosos com os demais necessitados.
A condenação formal da usura e dos lucros excessivos foi mantida estritamente pela Igreja Católica durante toda a Idade Média. Somente no Renascimento e durante o ciclo das Navegações, os moralistas católicos entenderam que os grandes riscos que o capital aplicado nas navegações corria justificavam que os investidores cobrassem juros que compensassem o risco e, ao mesmo tempo, se beneficiassem dos lucros imensos que as navegações, quando bem sucedidas, proporcionavam. Foi essa a abertura da porta para a “legitimação” de todo o sistema bancário moderno.
Prossegue o texto do Levítico: “Se teu irmão se tornar pobre junto de ti e se se vender a ti, não exigirás dele um serviço de escravo. Estará em tua casa como um operário, e como um hóspede estará a teu serviço até o ano jubilar. E sairá então de tua casa, ele e seus filhos com ele; voltará para a sua família e para a herança de seus pais. Porque são meus servos que tirei do Egito, não devem ser vendidos como se vende um escravo. Não dominarás sobre ele com rigor, mas temerás o teu Deus.” (25, 9-43)
Nesse texto é considerado o caso da pessoa empobrecida que se entregava como escrava, para pagar uma dívida ao seu credor. Esse era um costume generalizado na Antiguidade e também praticado em Israel. O israelita que, por empobrecimento, “se vendesse” a outro, não poderia ser tratado como escravo, mas como se fosse um operário, um hóspede; prestaria o serviço devido, mas retornaria à condição de homem livre no ano jubilar. E, mais uma vez, o texto bíblico recorda que os filhos de Israel já tinham sido escravos no Egito, e por isso deviam ser benevolentes com seus irmãos empobrecidos.
A escravidão perpétua, costume inviscerado e generalizado na Antiguidade, era também permitida aos israelitas, mas somente com pessoas de outros povos, jamais com os próprios membros do Povo de Deus: “Vossos escravos, homens ou mulheres, tomá-los-eis dentre as nações que vos cercam; delas comprareis os vossos escravos, homens ou mulheres. Podereis também comprá-los dentre os filhos dos estrangeiros que habitam no meio de vós, das suas famílias que moram convosco, dentre os filhos que eles tiverem gerado em vossa terra: e serão vossa propriedade. Deixá-los-eis por herança a vossos filhos depois de vós, para que os possuam plenamente como escravos perpétuos. Mas, quanto a vossos irmãos, os israelitas, não dominareis com rigor uns sobre os outros.” (Lev 25, 44-46).
Os versículos 47 a 55 tratam da hipótese de um israelita empobrecido se vender não a alguém do mesmo povo, mas a um estrangeiro enriquecido que habite entre israelitas. Nesse caso, prestará serviço ao estrangeiro, mas gozará de mais facilidade para ser resgatado, e não será tratado com rudeza, como se fosse um escravo. E, mesmo que não ocorra o resgate, retornará à liberdade no ano do Jubileu, juntamente com os filhos que tiver. O motivo disso é mais uma vez lembrado, no versículo que fecha o capítulo: porque os filhos de Israel são servos do Senhor, que os tirou da terra do Egito.
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Armando Alexandre dos Santos, licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro da Academia Portuguesa da História e dos Institutos Históricos e Geográficos do Brasil, de São Paulo e de Piracicaba