Armando Alexandre dos Santos
Estudamos nas semanas anteriores a mîsharum, ordenação legal que os soberanos da Antiga Mesopotâmia determinavam de tempos em tempos, corrigindo desajustes e restabelecendo o equilíbrio geral da sociedade. Outro instituto legal da Antiguidade que denota a mesma preocupação com o equilíbrio social e que por certo está na raiz do moderno conceito de justiça social é o do Jubileu, instituído pela Lei Mosaica, escrita por Moisés por inspiração divina e consignada no Antigo Testamento. Era a Lei que o Senhor dava ao seu povo eleito, lei essa que Jesus Cristo, muitos séculos depois, declarou explicitamente que não vinha revogar, mas cumprir plenamente: “Não julgueis que vim abolir a lei ou os profetas; não os vim destruir, mas sim para os cumprir” (Mt 5,17)
A legislação sobre o Jubileu, acompanhada de exortações morais acerca da necessidade da observância da Lei de Deus, se encontra no Antigo Testamento, no capítulo 25 do Levítico. Também noÊxodo 23, 10-12 e em Deuteronômio 15, 1-6, há disposições sobre o ano sabático que se relacionam com o Jubileu. Mas é em Levítico 25, 1-55 que estão mais ampla e completamente expressas as disposições legais sobre o Jubileu.O nome do livro é devido ao fato de ele conter quase exclusivamente normas e leis atinentes às funções sacerdotais, que entre os hebreus eram atribuições próprias da tribo de Levi. O capítulo 25 contém determinações que concerniam a todo o povo, mas seu enfoque principal era o culto do sábado (o dia em que o Senhor descansou, depois de ter empregado seis dias na Criação), e, por extensão de sentido, ao ano sabático (o sétimo ano, dedicado ao descanso do homem, depois de seis anos de trabalho, e ao descanso da terra, depois de seis anos de produção) e ao ano do jubileu (o quinquagésimo ano, depois de 7 ciclos de 7 anos cada um). No ano sabático não era lícito cultivar a terra, mas somente colher o que ela espontaneamente oferecesse, assim como o que havia sido armazenado das colheitas anteriores.
A Lei estabeleceu um ciclo adequado para a conservação da vida, do modo mais sábio, equilibrado e adequado à natureza, tanto do homem quanto da terra. Esse ciclo é inspirado na obra do próprio Deus Criador, que trabalhou na Criação durante seis dias e repousou no sétimo, como se lê no Gênesis: “Assim foram acabados o céu e a terra, e todos os seus ornatos. E Deus acabou no sétimo dia a obra que tinha feito; e descansou no sétimo dia de toda a obra que tinha feito” (Gn 2,1-2). Esse sétimo dia, foi determinado que se consagrasse ao Senhor: “E (Deus) abençoou o dia sétimo e o santificou, porque nele tinha cessado de toda a sua obra, que tinha criado e feito” (Gn 2,3). Assim como a cada seis dias segue-se um de descanso, dedicado ao Senhor, assim também a cada ciclo de seis anos segue-se um “ano sabático”, destinado ao descanso da terra, em honra do mesmo Senhor. Nesse ano, somente se comerá o que a terra der espontaneamente, sem trabalho algum do homem, assim como o que tiver sido armazenado das colheitas anteriores.
Completados sete ciclos de sete anos cada, no total de 49 anos, segue-se o quinquagésimo ano, um ano especial, denominado de Jubileu. É um ano santificado, consagrado especialmente ao Senhor, um ano de libertação. Nesse ano, é proibido de modo ainda mais taxativo o trabalho na terra, nem mesmo sendo permitido ceifar o que a terra der espontaneamente. Somente se pode comer “o produto dos campos”, isto é, aquilo que foi produzido anteriormente e guardado. Nesse ano, todas as operações de compra e venda efetuadas nos 49 anos anteriores – ou seja, desde o último jubileu – serão desfeitas, retornando os bens vendidos a seus antigos possuidores. O preço das operações de compra e venda deve, de acordo com os versículos 14 a 16 do citado capítulo do Levítico, ser proporcionado ao número de anos que faltam para o próximo jubileu. Assim sendo, uma terra será vendida no início do novo ciclo de meio século por um preço maior do que a mesma terra alcançaria no final desse ciclo, porque o comprador gozará dela por mais tempo. O objeto vendido e comprado, pois, não é propriamente a terra, mas o número de colheitas de que o comprador poderá dispor até o próximo jubileu. Isso fica claríssimo no texto do Levítico, cap. 25:
“23 A terra não se venderá para sempre, porque a terra é minha, e vós estais em minha casa como estrangeiros ou hóspedes. 24 Portanto, em todo o território de vossa propriedade, concedereis o direito de resgatar a terra. 25 Se teu irmão se tornar pobre e vender uma parte de seu bem, seu parente mais próximo que tiver o direito de resgate se apresentará e resgatará o que o seu irmão vendeu. 26 Se um homem não tiver ninguém que tenha o direito de resgate, mas procurar ele mesmo os meios de fazer o seu resgate, 27 contará os anos desde que fez a venda, restituirá o excedente ao comprador, e se reintegrará na sua propriedade. 28 Se não encontrar, porém, meios de o indenizar, a terra vendida ficará nas mãos do comprador até o ano jubilar; sairá do poder deste no ano do jubileu, e voltará à posse do seu antigo dono.”
O versículo 23 explicitamente afirma que somente o Senhor é proprietário pleno e perpétuo da terra; os demais ocupantes têm o usufruto, não porém a plena propriedade (no sentido moderno do termo) dela. Essa a razão pela qual não são definitivas as operações de compra e venda de terras, no povo de Israel. Há a possibilidade de resgate (vers. 24 a 27) e, em qualquer caso, no ano jubilar a terra retornará ao proprietário inicial (vers. 28). As mesmas regras valem para as casas de habitação situadas em povoações não muradas (vers. 31), que se entendem como fazendo parte do fundo de terras. Já com as casas de habitação em cidades ou povoações muradas, as regras são outras: elas só podem ser resgatadas pelo vendedor durante um ano completo; decorrido esse prazo, jamais voltarão para quem as vendeu, nem mesmo no ano do jubileu (vers. 29-30).
Na lei geral do Povo de Israel, é aberta uma exceção especial em favor dos levitas, tribo sacerdotal que merecia um privilégio – ou seja, etimologicamente, uma privatalex – sendo seus bens urbanos e rurais ainda mais marcadamente protegidos e garantidos do que os das demais tribos. Gozarão de um direito de resgate perpétuo, e não somente no ano do jubileu, como os israelitas das demais tribos:
“32 Quanto às cidades dos levitas e às casas que possuem, terão eles um direito de resgate perpétuo. 33 Quem comprar dos levitas uma casa, sairá no jubileu da casa vendida e da cidade em que a possua, porque as casas das cidades dos levitas são sua propriedade no meio dos israelitas. 34 Os campos dos arrabaldes das cidades dos levitas não serão vendidos, porque são sua propriedade perpétua.”
___
Armando Alexandre dos Santos, licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro da Academia Portuguesa da História e dos Institutos Históricos e Geográficos do Brasil, de São Paulo e de Piracicaba.