Armando Alexandre dos Santos
Como vimos no artigo anterior, o direito babilônico antigo denotava clara preocupação no sentido de ser defendido o direito dos fracos e desprotegidos. Entendia-se como função do monarca ser o “rei de justiça”, o garantidor da manutenção do equilíbrio social quando ameaçado pelo maior poder econômico de uma das partes.
O famoso Código de Hamurabi incentivava que recorressem ao rei todos os desprotegidos, carentes de apoio seguro em suas necessidades: “Que o homem oprimido, que está implicado em um processo, venha diante de minha estátua de rei da justiça e leia atentamente minha estela escrita e ouça minhas palavras preciosas. Que minha estela resolva a sua questão, ele veja o seu direito, o seu coração se dilate!”
Competia ao monarca, como representante dos deuses e protetor do povo, zelar pela conservação dos campos, mantendo-os férteis e seguros, e igualmente irrigados de modo conveniente para serem garantidas boas e abundantes colheitas, sendo por isso responsável pela construção e preservação dos indispensáveis canais. Segundo o Prof. Marcelo Rede, da USP e da Universidade Federal Fluminense, o rei era “um fator de equilíbrio cósmico, atuando nas dimensões humanas e divinas da existência”. Ainda segundo ele, a atuação do monarca, para a preservação desse equilíbrio, dava-se, concretamente, por meio de seu decreto de mîsharum, “palavra que pode ser traduzida por justiça, mas que implica uma ação mais dirigida por parte do soberano, uma interferência ativa na vida social através de um decreto. É esse vocábulo que se encontra na origem de um epíteto real frequente: shar mîsharim, isto é, rei de justiça.”
Assim agindo, o monarca não promovia uma revolução social, nem alterava a ordenação social do reino. Tratava tão-só de corrigir pontualmente excessos geradores de perigosos desequilíbrios, com vistas à manutenção da ordem social e econômica vigente. Rede destaca que esses atos de reis babilônicos “não correspondiam a nenhum programa de reforma social profunda”, mas, muito pelo contrário, eles se revestiam de “um caráter conservador, de retorno à ordem estabelecida, momentaneamente conturbada, e de retomada dos parâmetros estáveis e seguros do passado”. E, muito acertadamente, aponta para o anacronismo de se quererem aplicar a uma realidade completamente diferente da nossa, os critérios da modernidade atual: “A noção de justiça social vinculada à monarquia mesopotâmica deve ser entendida em seus próprios termos históricos, e não a partir dos parâmetros modernos, que lhe seriam certamente anacrônicos.”
Rede estudou pormenorizadamente os numerosos decretos de mîsharum emitidos ao longo de séculos pelos monarcas da Babilônia, mas do mesmo modo estudou uma outra realidade mesopotâmica complementar. Os reis de Larsa, cidade-estado próxima e de situação socioeconômica muito parecida com a da Babilônia, também emitiam decretos periódicos do gênero da mîsharum; disso há notícia certa, embora não se tenham encontrado até hoje os textos de nenhum desses decretos; de Larsa, entretanto, foi preservada outra fonte documental preciosa, constituída por um grande conjunto de arquivos comerciais privados. Rede utilizou, como fonte primária básica para sua tese de doutorado, defendida na Sorbonne, em 2004, o arquivo privado de quatro gerações de membros da família Sanum, proprietários poderosos de Larsa que compravam terras de pessoas empobrecidas e conservaram seus registros.
Numerosos outros estudos de Rede, sobre a Mesopotâmia, traçam um quadro comparativo entre os reinos de Larsa e da Babilônia, trabalhando com a analogia de situações. Por exemplo, em “Les vendeurs et la vente de biens immeubles en Babylonie Ancienne” (2010), o autor estuda detalhadamente numerosos casos de compra e vende de bens imóveis urbanos na antiga Babilônia, com enfoques estatísticos sobre os tipos de vendedores e compradores. E em “Decreto do Rei: por uma nova interpretação da ingerência do Palácio na economia babilônica antiga” (2006), focaliza mais as operações econômicas em si – o objeto das operações de compra e venda, os tipos das operações realizadas (distinguindo as motivadas por necessidade das decorrentes de meras atividades comerciais), as consequências dos decretos reais sobre cada um desses tipos de operações, os valores envolvidos etc. Neste último trabalho, Rede levanta a possibilidade de a mîsharum não constituir uma inovação babilônica, mas ser algo já aplicado em outros reinos da região.
É provável que, com o avanço dos estudos sobre a antiga Mesopotâmia, novos documentos sejam revelados e novas luzes se façam sobre o curiosíssimo instituto jurídico da mîsharum.
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Armando Alexandre dos Santos, licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro da Academia Portuguesa da História e dos Institutos Históricos e Geográficos do Brasil, de São Paulo e de Piracicaba.