Na Antiga Mesopotâmia, a figura do “rei de justiça”

Armando Alexandre dos Santos

 

Começamos a tratar, em nosso último artigo, da mîsharum, instituto jurídico-administrativo praticado na antiga Mesopotâmia por efeito de uma iniciativa pessoal dos soberanos. Como vimos era um decreto real que constituía uma interferência do poder público no âmbito das relações econômicas privadas, com o objetivo de corrigir abusos e inconvenientes produzidos pela aplicação normal das leis e regras vigentes. Modernamente se tem procurado, nessa antiga instituição mesopotâmica, as origens do que hoje se designa como justiça social.

Costuma-se traduzir a palavra mîsharum por justiça, mas essa tradução é tão-somente aproximativa. Isso porque, nos idiomas mesopotâmicos, a ideia de justiça não se formava dedutivamente, a partir de um conceito abstrato e genérico aplicado a casos particulares, mas, pelo contrário, se formava indutivamente, a partir de casos concretos. A própria ideia de justiça social, igualmente, era mais implícita do que explícita.

Para se entender o alcance e a lógica do sistema, devemos ter em conta o papel do soberano (o “rei de justiça”) no ordenamento jurídico-institucional da antiga Mesopotâmia. Sobre esse papel, um texto publicado em 2009 pelo Prof. Marcelo Rede, da USP, é altamente esclarecedor. É muito fácil encontrá-lo na internet, basta procurá-lo pelo seu título (O “rei de justiça”: soberania e ordenamento na antiga Mesopotâmia).

Trata-se de um texto de curta extensão, no qual é feito um apanhado crítico do muito que vinha sendo publicado, nas décadas anteriores, sobre as monarquias mesopotâmicas, corrigindo pontualmente, de modo muito adequado, visualizações generalizadoras, simplificadoras e reducionistas, assim como interpretações anacrônicas de alguns autores. O anacronismo constitui (como se aprende no início de todos os cursos de graduação em História), o “pecado mortal do historiador”; ele se manifesta, por exemplo, quando estudamos determinado período histórico e, sem nos darmos conta disso, imaginamos os personagens daquele período como tendo conhecimentos, valores, modos de agir e de pensar da nossa época, ou de outras épocas históricas. Dessa projeção subconsciente decorrem erros de interpretação que podem alterar a fundo a objetividade do trabalho de análise.

No caso concreto que estamos examinando, foi muito exagerado, segundo o Prof.Rede, o poder absoluto e até despótico dos monarcas mesopotâmicos, quando, na verdade, esse poder “sempre foi temperado por contrapesos provenientes quer das elites palacianas e urbanas, quer das estruturas comunais, como as assembleias e os conselhos” (art. cit.). Nesse particular, a autoridade dos antigos reis mesopotâmicos apresenta marcada semelhança com a dos reis da Idade Média cristã, que teoricamente eram absolutos, mas cuja autoridade era temperada (e de certa forma participada) pela nobreza, e limitada por franquias, foros e privilégios populares locais, muitos deles decorrentes dos costumes praticados e jamais escritos, mas que eram respeitados por todos, inclusive pelos reis. Essa forma de monarquia orgânica medieval foi, no Renascimento e no Ancien Régime, gradualmente substituída pelo modelo de monarquias absolutas que preparou o terreno para a eclosão, em fins do século XVIII, da Revolução Francesa.

Também o caráter divino dos soberanos foi excessivamente generalizado; segundo o Prof. Rede, o rei era, sem dúvida, entendido como “o escolhido dos deuses e seu representante maior perante os mortais”, mas, “ao contrário do que ocorria no Egito, a concepção de um soberano divino foi mais uma exceção do que uma regra nos mais de três milênios de história mesopotâmica” (art. cit.).

O rei exercia um papel guerreiro de grande relevo, sendo importante para a defesa e segurança do reino; mas desempenhava também um papel protetor e provedor do povo, simbolizado pela metáfora do bom pastor, aquele que conduz seu rebanho a pradarias seguras e férteis e o defende contra os perigos que o ameaçam. A metáfora do bom pastor, aliás, para designar o bom governante, é recorrente na cultura dos povos antigos que deviam muito de sua sobrevivência às atividades pastoris; trata-se de uma aproximação de imagens e ideias intuitiva, presente não só nos dois Testamentos bíblicos, mas também na mitologia grega, e em fontes primárias do Egito.

Havia, no direito babilônico, uma preocupação muito grande no sentido de defender o direito dos fracos contra abusos e opressões de pessoas de maior poder econômico. Entendia-se que era função do monarca ser o “rei de justiça”, o garantidor da justiça no país, repondo assim o equilíbrio social ameaçado pelo maior poder de uma das partes. Isso não era apenasum mero instrumento de propaganda e legitimação do rei, mas correspondia também ao empenho em manter o equilíbrio social.

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Armando Alexandre dos Santos, licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro da Academia Portuguesa da História e dos Institutos Históricos e Geográficos do Brasil, de São Paulo e de Piracicaba.

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