Ata da Câmara de 1822: “europeus são inimigos”

Giovanna Fenili Calabri, arquivista do Setor de Documentação e Transparência – CRÉDITO: Reprodução/Internet

O dia 7 de setembro, data em que oficialmente o Brasil celebra sua Independência de Portugal, ocorrida em 1822, marca o início da construção do Estado brasileiro e da constituição de uma nação propriamente dita. Os fatos que levaram à separação do Brasil do então Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves são bastante conhecidos e fartamente documentados na historiografia, no entanto, para além dos acontecimentos ocorridos em São Paulo, às margens do Ipiranga, e na então capital, Rio de Janeiro, é também intrigante ver como o processo de Independência reverberou em Piracicaba.

Parte dos registros históricos dos ecos independentistas em Piracicaba está preservado no Setor de Gestão de Documentação e Arquivo da Câmara Municipal de Piracicaba, num compilado de atas de vereança que registram as reuniões dos recém-empossados vereadores da então Vila Nova da Constituição, e que retratam a chegada, nestas terras, da notícia da Independência e dos subsequentes festejos comemorativos.

“Estes documentos fazem parte do primeiro livro de atas da Câmara Municipal de Piracicaba, com manuscritos que vão desde 1822 a 1827, e mostram como as informações sobre o processo de Independência chegavam na cidade. É interessante notarmos que Piracicaba deixou de ser uma Freguesia e passou a ser uma Vila em 10 de agosto de 1822, pouquíssimo tempo antes da Independência, e recebeu seu novo nome, Constituição, em homenagem à assembleia constituinte portuguesa, e não a uma constituinte brasileira”, diz Giovanna Fenili Calabria, arquivista e chefe do Setor de Gestão de Documentação e Transparência.

DOCUMENTOS 

A primeira ata a mencionar o processo de Independência do Brasil aparece em 7 de setembro de 1822, e relata a chegada das primeiras ordens para que os piracicabanos não mais considerassem os portugueses como amigos: “aos sete de setembro de mil oitocentos e vinte e dois, nesta Vila da Constituição, Comarca de Itu e casas da residência do Juiz Ordinário João José da Silva, onde se convocaram os vereadores e o procurador abaixo assinados, e ai, em vereança, abriram um ofício do meritíssimo Corregedor da Comarca, acompanhado de alguns Impressos e Decreto de 1º de setembro em que declara e contém que o Governo de Portugal e mesmo os europeus são nossos inimigos”.

Mais à frente, em 2 de outubro de 1822, chegam à Câmara da Vila Nova da Constituição ofícios que falam sobre a necessidade de se investir de plenos poderes, o quanto antes, o então príncipe regente, Dom Pedro, para que ele de fato possa governar a nação: “(…) se juntaram em vereação o Juiz-presidente, Vereadores e Procurador da Câmara comigo, escrivão da mesma, clero, nobreza e povo, que foram chamados, os quais depois de reunidos, leu o Presidente da Câmara dois ofícios que havia recebido, nos quais se manifestava a urgente necessidade que havia de investir quanto antes ao Príncipe Regente no exercício efetivo de todos os atributos do Poder executivo, que no sistema constitucional competem ao Rei Constitucional: pela Câmara, clero, nobreza e povo foi unanimemente aprovada esta indicação, com as mais aplausíveis demonstrações de alegria, declarando todos, que em tudo que vão seguir os passos do venerado e respeitável Senado do Rio de Janeiro pela fidelidade e obediência com que Ele constantemente se tem prestado sobre a Causa Brasil, e do nosso [Immortar] Regente.”

Dez dias depois, em 12 de outubro de 1822, quando Dom Pedro é então aclamado Imperador do Brasil, Piracicaba comemora, com “vivas”, fogos de artifício e uma missa cantada, o novo dirigente da nação: “(…)Clero, cidadãos que concorreram e povo, e depois de reunidos, declarou o Presidente da Câmara a todos que se achavam presentes que em vereação de dois do corrente tinhas esta Câmara deliberado que no dia de hoje, doze de outubro, se reunissem na Casa da Câmara para celebrar-se a feliz Aclamação de Sua Majestade Imperial Constitucional e nosso Perpétuo Defensor do Império do Brasil (…) E logo pelo Juiz-presidente foi feita uma fala em que demonstrava as grandes vantagens que desta aclamação resultava ao Brasil, e o muito que esta [deveu] ao seu Ínclito Imperador, concluindo com três declarações que diziam = Viva nosso Imperador Constitucional= Viva o [Excelso] Senhor Dom Pedro de Alcântara = Viva o defensor perpétuo do Império do Brasil= Os quais foram aplaudidos com os mesmos Vivas seguindo-se três descargas de fogo volante artificial; depois do que dirigiu-se à Câmara, e o clero e povo à Igreja Matriz onde celebrou-se Missa cantada, finda a qual o reverendo vigário da mesma apresentou um eloquente discurso. Findo aquele ato religioso em que se achava o Santíssimo Sacramento [Exposto] se concluiu esta Festividade Eclesiástica com uma salva de fogo volante, [recolhendo-se] a Câmara, Clero e Povo, à Casa da Câmara donde tinham saído”.

A festa de aclamação do Imperador volta a ser tema de uma ata de vereança meses depois, em 14 de dezembro de 1822, que registra o pagamento de parte das despesas da festa, a exemplo da empenhada por um morador, Francisco Telles Barreto, na compra dos fogos de artifício: “E nesta mesma vereação pagaram a Francisco Telles Barreto os fogos que fez para a função de Aclamação de Sua Majestade Imperial e mais despesas da mesma festa com o dinheiro que se acha em mão do Procurador como consta do termo de vereança a folhas nove deste Livro”.

A última menção à Independência aparece três anos depois, numa ata de 10 de dezembro de 1825, ocasião em que é lido um ofício escrito pelo Ouvidor da Comarca e que dá conta do reconhecimento da Independência do Brasil por Portugal: “Aos dez dias do mês de dezembro de mil oitocentos e vinte e cinco nesta Vila da Constituição e casas de morada do Juiz Ordinário e presidente onde se convocaram os vereadores e procurador, faltando o vereador mais velho, Jose Ferras Paxeco, e sendo ai em sessão se abriu um ofício do meritíssimo Ouvidor da Comarca, acompanhado de um impresso, pelo qual se faz público haver Portugal reconhecido a independência deste Império”.

DOCUMENTAÇÃO E ARQUIVO

Além do primeiro livro de atas da Câmara, o Setor de Gestão de Documentação e Arquivo também preserva diversos outros manuscritos, fotografias, vídeos e obras de arte, que são cuidadosamente catalogados e acondicionados em suas instalações, no quarto andar do prédio anexo da Câmara.

“O Setor é responsável pela preservação não só destas atas, mas de todos os documentos produzidos e recebidos aqui na Casa. São documentos antigos, frágeis, então nós temos um trabalho especial para guardá-los, para acondicioná-los com a temperatura e umidade controladas. Quando necessário, nós também fazemos pequenos reparos, com papel japonês e com uma cola especial de forma a evitar que buracos e rasgos se alastrem no papel”, diz Giovanna.

Assim, a digitalização destes documentos torna-se recurso imprescindível à preservação dessa memória. “O trabalho de digitalização é importante justamente por isso, para que não precisemos manusear o tempo todo os originais. A digitalização facilita a consulta e a pesquisa e, aliada à transcrição, torna ainda mais fácil o entendimento dos conteúdos, dando acesso ao público a toda essa informação guardada conosco. Também estamos tentando dar ainda mais publicidade para esse conteúdo, de uma forma mais leve, por meio do nosso Instagram, que é o @camara.doct, e convido a todos que o conheçam”, completa a arquivista.

Mais informações sobre o Setor de Gestão de Documentação e Arquivo da Câmara também podem ser obtidas pelo e-mail [email protected]

Arquivista explica como é feita a transcrição das atas

As atas com o relato deste momento de nossa história foram recentemente transcritas e digitalizadas por Giovanna, seguindo o que estabelecem as “Normas Técnicas para Transcrição e Edição de Documentos Manuscritos”, preservando-se a transcrição da grafia original e explicitando-se, entre colchetes, possíveis dúvidas em relação ao que de fato aparece no texto.

“As regras são, principalmente, para não perpetuarmos erros. O contato com documentos manuscritos gera muitas dúvidas, como por exemplo, se aquilo que leio é um “vão” ou um “não”, se é um acento, se é um “a” ou um “o”. Então, as normas servem para que, caso alguém leia a minha transcrição, saiba o que são achismos, situações em que eu não tenho clareza sobre determinada palavra, seja pela grafia, seja pelo estado de deterioração do documento. Se leio, por exemplo, uma palavra que parecer ser “cachorro”, mas eu não tenho certeza se estou lendo “cachorro”, mas o contexto me leva a crer que o é, então eu coloco essa palavra entre colchetes, para deixar claro que é uma interpretação”, explica a arquivista.

A transcrição feita por Giovanna e a digitalização das atas originais estão disponíveis para download na matéria publicada no site da Câmara. Para facilitar a leitura, no entanto, no corpo desta matéria, as citações diretas aos documentos foram transcritas de forma livre pelo jornalista, ou seja, atualizando-as para o português corrente.

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