Armando Alexandre dos Santos
Tratamos, no último artigo, dos conhecimentos revelados por Gramsci acerca da Igreja Católica. Ele a estudava para mais eficazmente a combater, como declarou formalmente, mas a estudava numa profundidade surpreendente. Numerosas questões internas da Igreja Católica – teológicas, litúrgicas, morais, disciplinares – que à maior parte dos observadores pareceria não oferecer o menor interesse para um agnóstico, estão presentes, se bem que incidentalmente e de passagem, nos apontamentos de Gramsci.
Um aprofundamento dessas temáticas poderia, a nosso ver, revelar aspectos muito interessantes não só do pensamento gramsciano, mas também do equilíbrio de forças interno que, na Igreja, sempre ocorreu entre linhas distintas e antagônicas (conservadores X renovadores, Igreja Petrina X Igreja Joanina, clero regular X clero secular, Cúria Romana X Episcopados locais, disputas entre Ordens religiosas, especialmente Jesuítas, Dominicanos e Franciscanos etc.). O conhecimento em pormenores revelado por Gramsci de numerosas particularidades desses conflitos, ao longo da História da Igreja, mas especialmente nos últimos séculos, impressiona ao estudioso de História Eclesiástica que por certo não esperava encontrar tal conhecimento em um autor não especializado em temas eclesiásticos e até antagonista da Igreja. A análise detida que Gramsci faz, por exemplo, dos conflitos e disputas de influência na Igreja e nos meios católicos, entre as alas que ele denomina Integristas, da Ação Francesa e Jesuítas, é interessante e, embora contenha visões bastante questionáveis de vários pontos de vista, impressiona pela acuidade. A visão de Gramsci de uma Igreja “administrando” permanentemente conflitos internos chega a ser aproximada por Emma Fattorini, da concepção que tem, do catolicismo romano, um pensador como Carl Schmitt, que interpreta o catolicismo com uma “complexio oppositorum”.
Algumas referências que Gramsci faz a disputas internas na Igreja sobre delicados temas teológicos que a quase totalidade dos leigos, e mesmo muitos sacerdotes sequer conhecem (por exemplo, debates acerca da natureza da graça suficiente e sobre a diferença entre panteísmo e teopanismo), mostram que Gramsci possuía um conhecimento teológico surpreendente, incomum entre católicos leigos até de formação superior. Com efeito, é muito frequente, em nossos dias, até mesmo celebrados historiadores de fama mundial incorrerem em erros primários, em matéria teológica, quando se põem a escrever sobre temas religiosos. Essa ignorância de modo algum pode ser atribuída ao ateu Gramsci, o que não deixa de ser singular. As obras citadas por Gramsci nos Cadernos, são numerosas e bastante variadas, mas nem de longe sua leitura seria suficiente para explicar o conhecimento que Gramsci parece demonstrar de temas doutrinários e teológicos. Esse conhecimento com certeza foi sedimentado em leituras e reflexões muito mais amplas, realizadas na sua formação e na sua vida intelectual antes do cárcere.
Um tema que, a nosso ver, mereceria aprofundamento todo especial é o controvertido Ralliement, proposto por Leão XIII e implantado, com maior ou menor dificuldade, em todo o mundo. Em resumo muito sumário, com esse nome se designou a política preconizada a partir de 1888 por Leão XIII, que numa série de medidas de grande repercussão internacional incentivou os católicos franceses, e por extensão aos católicos de todo o mundo, a aceitarem como fato consumado e sinceramente (“sans arrière pensée”) a forma de governo republicana, colaborando com ela e procurando, dentro de sua normalidade institucional, defender por via de participação eleitoral, os interesses da Igreja no âmbito legislativo. Essa política, cuja análise exigiria um espaço de que não dispomos aqui, foi muito discutida e está no cerne do problema do integrismo católico e da Action Française, amplamente tratados por Gramsci. Hugues Portelli trata do caso francês muito rapidamente, detendo-se mais na análise das consequências do ralliement na Itália. A nosso ver, haveria muito mais que aprofundar acerca da análise gramsciana no próprio âmbito da França, como também de outros países.
Curiosamente, a política de ralliement, iniciada por Leão XIII, iria ter continuidade, num outro contexto e de outra forma, por meio da imensa transformação realizada na Igreja Católica a partir do Concílio Vaticano II (1962-1965). Este representou, na História da Igreja, um novo e muito mais amplo ralliement. Se o primeiro fora entre a Igreja e a República laicista, o segundo seria, muito mais latamente, entre a Igreja e a Modernidade em geral, com toda a congérie de aspectos que esta comporta, inclusive nos aspectos em que esta havia incorporado elementos do próprio socialismo.
Um dos aspectos mais interessantes dessa imensa transformação ocorrida na Igreja Católica a propósito e em decorrência do Concílio Vaticano II, foi a chamada Teologia da Libertação, toda ela inspirada de modo muito claro no pensamento gramsciano. A pergunta que, embora inesperada, a nosso ver se impõe é se, de certa forma, os escritos de Gramsci sobre a Questão Religiosa não poderiam, eles também, ser interpretados como uma espécie de ralliement, proposto pelo próprio marxismo à Igreja. A ser afirmativa a resposta a essa pergunta, outra se impõe: se, e em que medida, o próprio Gramsci teria podido entrever o imenso alcance que suas melancólicas lucubrações no cárcere teriam no futuro. Ao que parece, alguma noção de que escrevia para tempos futuros ele tinha, já que considerava seus escritos de interesse permanente – “für ewig”, como assinala em alemão Hugues Portelli (p. 289).
Há sinais, embora pouco precisos, de que Gramsci vislumbrava, no futuro, uma imensa transformação teológica na própria Igreja. As diversas referências que ele faz a Antonio Fogazzaro, autor de Il Santo, e uma referência de passagem ao Le Disciple, de Paul Bourget, parecem sinalizar nessa direção. Elas não foram consideradas por Portelli e Fattorini, os dois autores que vimos no artigo anterior, e também não parecem ter despertado a atenção dos anotadores da edição brasileira dos Cadernos. Uma pesquisa mais detida em outros escritos de Gramsci pode trazer luzes a esse respeito.
Esses temas todos, repetimos, não foram tratados, pelo menos em toda a sua amplitude, nos citados trabalhos de Portelli e Fattorini. Uma pesquisa superficial, feita por nós, também não revelou outras obras que os tenham estudado. É possível que pesquisas mais acuradas revelem a existência de tais obras. Se se confirmar a sua não existência, talvez possa estar aí o tema para um estudo novo, sumamente instigante e desafiador.
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Armando Alexandre dos Santos, Licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro da Academia Portuguesa da História e dos Institutos Históricos e Geográficos do Brasil, de São Paulo e de Piracicaba.