Alê Bragion
O que eu vejo é o beco, como Bandeira em seu poema. Nada de Glória, baía ou linha do horizonte. Só o beco – às vezes sujo, às vezes úmido, às vezes seco. Talvez não haja poesia sem certa – e boa – dose de dor no olhar do contador, do cantador que enuncia. Não que tudo seja dor vivida, apenas – como tão bem versou Pessoa em seu poema de autopsicografia. Não a dor que o poeta, fingidor, finge que tem. Mas aquela que está na paisagem da janela, impregnada nas coisas das gentes e nas gentes que as coisas têm. Aquela que tem eco silencioso, ruidoso segredo sonoro em imagético obscuro degredo. Aquela dor que só se mostra a quem sabe – por dentro – que, por mais que o ambiente se amplie em correntes de vento, o que há no fim das contas do interior mo(vi)mento é apenas – e tão somente – o berro, o beco.
Dizem alguns biógrafos que Mozart compôs suas obras mais melancólicas e espirituais em momentos de maior estabilidade econômica e exterior alegria. Outros afirmam que o grande mestre do que talvez se possa chamar de tango argentino moderno, o genial Astor Piazzolla, certa vez teria afirmado que – apesar de ser uma pessoa alegre – suas músicas inevitavelmente eram todas tristes. Nunca acreditei muito nessas histórias, e meu tédio também jamais me estimulou a verificar se são verdadeiras. Mas como elas me agradam, aceito de bom grado que assim o sejam – e fico com o bonito e o doloroso que ensejam: o fato certo que o ato criativo – profissional e ou intuitivo – se dá por dentro, no artista, exatamente em seu beco.
Do conjunto imenso de duas ou mais palavras que sei da língua alemã, a palavra-beco que me pega em cheio é “Ich”. Curta. Aguda. Cortante. Sem recheio. “Ich” raspa no âmago da gente como se corrêssemos, em redes, as unhas dos dedos das mãos pelas paredes. “Íiichi” seria, se talvez pudéssemos tentar reproduzir ingenuamente o som cadente que anuncia no alemão o que em bom português de dia de semana se traduziria como “eu.” Nada mais tão estreito do que a palavra “Ich” para materializar o que somos (ou o que sou?) no mundo-beco em que habita o nosso nada-eu. Talvez por isso, Ich, de alguma forma, se assemelhe musical e estruturalmente a palavra “Nichts” – que no idioma de Nietzsche quer justamente dizer “nada”. Um nada, portanto, composto do eu.
E nada somos depois do nada da arte, da solidão do fim da escrita, do fim do texto, do fim do nexo, da ausência de aplausos depois do teatro fechado, da realidade vivida após a peça encerrada, da música cantada, da plateia saída. Somos a imateralidade do existir que vem depois, em casa, de um jogador de futebol que, antes, em uma partida, faz um gol e vibra num estádio de vidas cheio que torce e grita. O que vem depois? – é o beco. O que sobra e o que sem tem é o nada de colo e seio que fica após o quadro pintado, o livro lavrado, o ser inventado ao meio. Ich. Nichts. Eu. Nada. Sou (ou somos?) sempre o que está no depois da galeria fechada.
Das lendas que talvez sejam reais, uma das que mais gosto e que também não fui pesquisar se verdadeira ou se verdade em forma de ficção, conta que a grande dama da voz, a inigualável mestra da canção, Elis Regina, ao responder como poderia ela ser e sentir-se tão triste após cantar para um teatro de pessoas caindo a seus pés em adoração teria dito – em declaração sincera, sem ironias e, de nada, mesquinha: “é que, depois que o show acaba e as pessoas vão embora, eu fico só comigo, no camarim da vida, sozinha”. Elis, de luz. Se real ou não, sua história é sim tão nossa, tão minha.
De Nichts, de Ich, de Eu, de Nada somos feitos e refeitos. Mas, mais importante que a viagem, talvez seja estrada. Talvez seja o contemplar, o entender e o cantar, por fim, do rumo que mora no beco: eco, real, do que temos e seguimos – não sem um pouco de ficção – nesta jornada.
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Alê Bragion, doutor em Teoria e História Literária pela Unicamp, editor do portal Diário do Engenho e cronista desta Tribuna desde 2017