Meia ração

Camilo Irineu Quartarollo

 

Sol alto e fim de feira. Os melhores produtos já foram vendidos. Sobram refugos. Não vendeu não vende mais, resta contar a féria. As xepas do chão são levadas por alguns necessitados. A fome voltou ao país e aumentam desalentados, invisíveis e subnutridos.

Ações caritativas dos mais variados grupos laicos e de confissões religiosas minimizam a crise alimentar. Levam-se aos carentes lanches, roupas, cobertores e respeito.

O Brasil ocupa no planeta o segundo lugar de maior produtor de alimentos e de carnes, e tem gente morrendo de fome!

Numa Live, o ministro Guedes equaciona o problema. “O prato de um classe média europeu, que já enfrentou duas guerras mundiais, são pratos relativamente pequenos. E os nossos aqui, nós fazemos almoços onde às vezes há uma sobra enorme. Isso vai até o final, que é a refeição da classe média alta, até lá há excessos… Como utilizar esses excessos que estão em restaurantes e esse encadeamento com as políticas sociais, isso tem que ser feito. Toda aquela alimentação que não for utilizada durante aquele dia no restaurante, aquilo dá para alimentar pessoas fragilizadas, mendigos, desamparados. É muito melhor do que deixar estragar essa comida toda”. Após a repercussão, o ministro se justificou que falava de sobra limpa, das panelas, que estejam em condições de consumo. Não era prato comido.

Ora, a tese de que o alimento é suficiente a todos, mas tem alguns comendo o dos outros! A fala do Guedes singulariza a culpa “no” classe média glutão. Não acho que o pobre deva depender da meia ração da classe média. A meu ver, a fome é por falta de programas sociais efetivos, inclusão dos invisíveis sem cardápio, acesso à cidadania com projetos direcionados e não porque alguém deixa um suco pela metade ou um quiabo indigesto no prato.

A referência de comida consumida na Europa porque lá houve duas guerras mundiais, parece-me mais um chute. Há estudos comparativos sérios?

Aqui tivemos muitas guerras intestinas. A violência está no cerne da nossa História escravista e de formação de estado, atualmente somos um dos países que mais matam, inclusive pela fome e preconceitos.

A louvável ação social feita pelos restaurantes não é do prato mesmo, mas da panela do cozinheiro, de forma rápida para evitar o azedume, diarreias e infecções, mas não para suprir falta de políticas públicas. A ação do restaurante é solidária e não obrigatória ou de governo. Alimentação digna é direito humano e constitucional, inda mais num estado produtor de alimentos. É o estado que tem de desenvolver políticas públicas para tanto, não deixar por conta de paliativos e de ações de benemerência ou eventuais sobras da mesa.

É importante mais ações nas prefeituras, inclusive quanto ao desperdício, principalmente programas sociais sustentáveis, mas antes é preciso levantar onde moram os necessitados, RG, CPF, para levar a efeito soluções.

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Camilo Irineu Quartarollo, escrevente, escritor, autor do livro Confissões do Cardeal Tosca, entre outros

 

 

 

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