Uns braços

Camilo Irineu Quartarollo

 

Antigamente, mulher com os braços de fora, nus, no parapeito da janela, era “oferecida”. Em 1885, o jornal Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro publica o conto de Machado de Assis, “Uns braços”. A leitura deste conto misturado com as notícias cotidianas chamou a atenção na praça, pode ter sido a delícia de jovens da estiva, afoitos, e também dos curiosos de obituários.

No Rio de Janeiro, havia muito lixo, mosquitos e ratos, transmissores das principais doenças no início do século XX, nesta capital de 800 mil habitantes, o dobro dos da Piracicaba atual. Sem sistema de esgoto, os dejetos humanos eram transportados em barricas até o mar e jogado. Pior, conta-se que o transportador que se manchava como um tigre aproveitava a chuva forte e despejava a barrica no declive, esperando que a enxurrada levasse ao mar dejetos fétidos, cães mortos e tudo o mais. Depois o mau hábito continuou mesmo em chuviscos e a sujeira se acumulava a céu aberto. A movimentação de pessoas pelas praias e embarcações era intenso e, com as doenças transmissíveis, iam e vinham.

Já desde a metade do século XIX grassavam epidemias como tuberculose, peste bubônica, febre amarela, cólera e milhares de mortos. Quando da escravidão rural davam-se um jeito de deixar pequenos surtos epidêmicos sob o tapete, morriam-se “algumas peças” e sobrava o rebanho imune.

A partir do século XX, a urbanização se intensifica, inclusive com resquícios da escravidão urbana e surtos transatlânticos. O Brasil tem a sorte de ser celeiro de variantes já de outrora.

Na Cidade Maravilhosa, o governo põe uma lei específica de que pagar por cada rato capturado e assim deter a peste bubônica. Ratos saindo pelo ladrão e “criadores de ratos”, como mostra uma charge da época. A maioria da população, mesmo vendo seus mortos, não levava a sério a pandemia. Culpavam o destino, a Deus ou superstições, jamais ratos, baratas, pulgas e os maus hábitos de higiene.

A vacina era tida por “política despudorada” de Rodrigues Alves e Oswaldo Cruz, a cabo de “promíscuos enfermeiros assanhados” por braços nus e nádegas carnudas.

Os homens protestaram contra a vacinação obrigatória em suas mulheres, os braços não, coxas nem pensar. A ideia do desfrute dos braços nus reaparece no imaginário provinciano – não culpem Machado.

Atualmente, a situação virou crônica e o conto de Machado degustação de momentos mais tensos, em que vivemos a Covid-19. Hoje, bunda é mostrada sem pudor em programas de TV, na net e grafada num texto que vovós leem. A vergonha é não termos vacinas, quer nos glúteos ou nos braços nus. Temos uma CPI no senado trazendo paralelos sombrios sobre questões bem contaminadas e mais casos vergonhosos se descobrem a cada dia.

Vacinação é comunitária ou não é vacinação, não tem essa de direito; é dever, é saúde coletiva, pública.  A infecção desenfreada não produz imunidade, produz, sim, variantes letais. Vacine-se.

_____

Camilo Irineu Quartarollo, escrevente e escritor, autor de Entre as perícopes, dentre outros

 

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Rolar para cima