Madeira: fartura e fome, esplendor e decadência

Armando Alexandre dos Santos

 

Superadas com muita “garra” as dificuldades materiais decorrentes da topografia acidentada e do clima, a Ilha da Madeira conheceu, desde o final do século XV até meados do século XVI, um período de grande riqueza e prosperidade, graças ao seu açúcar de excelente qualidade, que era vendido para a Europa inteira. Também os vinhos finos da Madeira passaram a ser consumidos na Europa, sendo muito valorizados.

Dois curiosos indícios da fama dos vinhos madeirenses: numa das peças de Shakespeare, um personagem, Sir John Falstaff, aparece vendendo sua alma ao demônio em troca de uma perna de frango e um cálice de vinho da Madeira.E quando o duque de Clarence, na Inglaterra, foi condenado à morte por se ter envolvido numa conspiração contra a coroa, teve o privilégio de escolher como seria executado. E, segundo se conta, ele teria pedido para morrer afogado num tonel de vinho Malvasia, da Ilha da Madeira… O pior é que o coitado foi realmente afogado, mas de cabeça para baixo, de modo que estragou o vinho e nem sequer pode saboreá-lo na hora da morte!

Em 1514, ainda nessa fase de grande prosperidade, foi criada a Diocese do Funchal, que foi, até 1533, a maior diocese do mundo, a maior diocese que já existiu em toda a História da Igreja Católica.O Bispo da Madeira. com sede no Funchal, tinha jurisdição, conferida pelo Papa, sobre todos os domínios ultramarinos portugueses. Até onde chegasse uma caravela portuguesa, lá chegava a autoridade espiritual desse Bispo: Brasil, África, Índia, Extremo Oriente.O Brasil português fez parte da Diocese do Funchal até 1551, quando foi criada a Diocese da Bahia.

Ora, que fez a Madeira nesse período áureo? Guardou ciosa e egoisticamente para si suas imensas riquezas, para fruí-las como merecida recompensa pelos trabalhos colossais que já tinha realizado?Não. Mas portou-se como mãe de seus irmãos menores. Sacrificou-se por eles. Ofereceu a eles seus tesouros, sem se preocupar com a concorrência que eles mesmos lhe fariam num futuro muito próximo.

O açúcar, a maior riqueza da ilha, foi levado, por madeirenses, inicialmente para os Açores, cuja primeira ilha foi atingida pelos portugueses em 1432. Aliás, a Madeira contribuiu poderosamente para o povoamento e colonização dos Açores numa fase em que ela própria lutava contra a carência de população. Em 1473, Rui Gonçalves da Câmara, filho de João Gonçalves Zarco, adquiriu os direitos sobre a capitania de São Miguel dos Açores, e para lá foi com sua gente, dando assim início à Diáspora Madeirense.

Não foi só para os Açores que a Madeira exportou o açúcar e, com ele, a tecnologia da sua fabricação. Também para Cabo Verde, Canárias, São Tomé e, sobretudo, para o Brasil.No Brasil, as condições favoráveis permitiram que o açúcar fosse produzido em muito maior escala e a preço muito mais reduzido, o que determinou a quebra da economia madeirense. Já no final do século XVI, o Brasil havia ultrapassado a Madeira na produção açucareira.

A Madeira, que havia se desgastado muito plantando quase exclusivamente cana-de-açúcar nas partes mais baixas, e uvas nos socalcos mais elevados, e que, por outro lado, ia tendo sua população cada vez mais numerosa, começou a sofrer as consequências disso.

Excetuando o período da Guerra de Pernambuco, quando caiu a produção brasileira e a madeirense teve uma relativa valorização, foi de decadência o século XVII. Em certas fases críticas, chegou a haver fome na Madeira. A base da alimentação popular era o inhame, ou cará, alimento nutritivo, mas de produção muito incerta, pois depende das chuvas e do clima. O resultado é que em períodos nos quais as condições climáticas eram desfavoráveis, houve fome, e fome terrível.

Os Açores produziam ótimo trigo, mas esse trigo era reservado para outras partes do Império luso que passavam por necessidades prementes. E na Madeira houve fome.O recurso dos madeirenses era apresarem navios carregados de mantimentos que por alguma razão entravam no Funchal. Era esse o recurso desesperado. Esses mantimentos eram pagos, não eram roubados, pois paradoxalmente não era dinheiro que faltava, era comida.

Em 1695, num momento de mais terrível aflição, os habitantes do Funchal, desesperados, resolveram recorrer a Nossa Senhora do Monte. A imagem da Virgem foi levada, do seu santuário para o centro da cidade, em procissão. A Virgem valeu aos madeirenses, e justamente nessa hora entraram no porto três navios, abarrotados de trigo e de farinha. Foi a partir daí que a devoção a Nossa Senhora do Monte, que já era tradicional na Madeira, teve grande incremento e se transformou na devoção marial por excelência, do madeirense.

Aonde chegaram os madeirenses, lá chegou a devoção a Nossa Senhora do Monte. Até no longínquo Havaí existe um santuário de Nossa Senhora do Monte, erigido por descendentes de madeirenses. E aqui na Casa da Ilha da Madeira de São Paulo, num altar, estão, lado a lado, duas imagens de Nossa Senhora, a do Monte e a de Fátima.

No século XVIII foi-se acentuando o regime de fomes periódicas. Um estudo de meados desse século revela que a alimentação que os madeirenses obtinham, ou da própria ilha, ou trazida de outros locais, era suficiente apenas para alimentar 20 mil pessoas. Ora, a população da ilha era, nessa altura, de 50 mil pessoas, do que deduz que, em média, o madeirense comia apenas 40% daquilo que precisava comer.

Sem dúvida, pode ser um pouco exagerado esse cálculo, pois as estatísticas desse tipo habitualmente ignoram outros meios paralelos ou alternativos de se obterem alimentos: hortas caseiras, pequenas criações etc. Ainda hoje, quem lê sem espírito crítico certos estudos da FAO ou certas publicações demagógicas acredita que, no Brasil atual, 30 ou 40 por cento dos habitantes são desnutridos!…

Mas, exageros à parte, não deixa de ser uma triste realidade que houve fome na Madeira, e que, em consequência disso era elevada a taxa de mortalidade. Mas, graças à tradicional prolificidade dos madeirenses, a população continuava a crescer. E, portanto, a agravar o problema das fomes periódicas.

Foi então que a Coroa portuguesa resolveu realizar a transferência maciça de madeirenses (como também de açorianos) para o sul do Brasil. Tinha, assim, origem a diáspora madeirense, que será objeto do próximo artigo, com o qual encerraremos esta série.

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Armando Alexandre dos Santos, licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro da Academia Portuguesa da História e dos Institutos Históricos e Geográficos do Brasil, de São Paulo e de Piracicaba

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