Casar ou pagar imposto: você decide!

Armando A. dos Santos

 

Continuemos a exposição da gesta lusitana no Arquipélago da Madeira, descoberto pelos portugueses em 1419/1420. Como vimos no artigo anterior, a ilha da Madeira, a maior e mais aproveitável do arquipélago, era pequena, muito montanhosa e, ademais, coberta por uma floresta espessa que se tornou indispensável desbastar.
Desbastada a floresta, era preciso aproveitar a pouca terra disponível, para alimentar os dois donatários – João Gonçalves Zarco e Tristão Vaz – suas famílias e os numerosos colonos que eles levaram, a suas custas, para povoar a nova terra. Aí apareceu um problema terrível. Na Madeira, chovia muito, chovia até torrencialmente. Mas a água caía e não era retida pelo solo, escorrendo rapidamente para o mar e arrastando consigo a camada superior da terra, num processo de erosão que poderia ser fatal.
O que fizeram os portugueses para vencer esse problema? Planejaram cuidadosamente, e executaram laboriosamente um sistema de irrigação artificial que até hoje desperta admiração nos engenheiros que o examinam: o sistema das “levadas”.
As levadas são regatos artificiais feitos para distribuir a água por toda a superfície agricultável da ilha. No alto das montanhas, a 600, 800 e até 1000 metros de altitude, foram feitos grandes reservatórios apropriados para reter a água das chuvas. E essa água era, depois, distribuída por riozinhos artificiais, condutos abertos que desciam as montanhas com uma inclinação muito suave, de modo a descer vagarosamente. As levadas têm, geralmente, menos de um metro de largura, e 50 ou 60 cm de profundidade. São talhadas no flanco das montanhas, muitas vezes em pedra viva e beirando precipícios de centenas de metros. Elas vão dando voltas às montanhas, sempre com inclinação muito suave, e por vezes se estendem por mais de 50 km. Frequentemente a topografia exigia que as levadas atravessassem túneis (alguns com mais de um quilômetro de extensão) para poderem prosseguir seu rumo. Eram os chamados “furados”.
Imagine-se a extrema dificuldade que isso representou, para os recursos rudimentares da época! A maior parte das levadas, com efeito, foi realizada ainda nos séculos XV e XVI, pela iniciativa privada dos donatários e outros sesmeiros, que depois vendiam a água aos que dela faziam uso. Só no início do século XIX o Estado português principiou a fazer levadas, que até então eram obra de particulares. As levadas madeirenses foram tão bem planejadas e tão bem executadas que ainda hoje, mais de 500 anos decorridos, estão funcionando e servindo perfeitamente.
Ter assim domado as águas na Madeira foi uma obra hercúlea, uma obra ciclópica, que bem mereceria ser mais conhecida e louvada a nível mundial.
Não foi só essa a obra dos madeirenses no campo da engenharia. Outra tarefa, talvez não menor, foi domar as montanhas. De fato, as montanhas da Madeira eram tão íngremes que não se prestavam à agricultura. Mas, à custa de esforços inenarráveis, os madeirenses foram esculpindo suas montanhas de forma a constituir patamares, ou socalcos, perfeitamente planos, sustentados por sólidos contrafortes de pedra. O resultado dessa obra titânica foi que a Madeira pôde aproveitar suas terras (que pela composição química eram muito férteis, de origem vulcânica), e começar a produzir alimentos de climas diversos, conforme a diferente altitude dos terrenos: desde coqueiros, ananases e bananas, de clima tropical, até uvas e trigo, que requerem climas mais temperados. Também esses contrafortes e esses socalcos ainda servem hoje em dia, tendo resistido a mais de 500 anos de chuvas torrenciais.
Mais uma vez, permitam os leitores que eu pergunte: por que, em nível mundial, não é mais conhecida e louvada essa obra-prima do engenho humano, da persistência humana?
No início do século XVI, o grande Afonso de Albuquerque concebeu e chegou a dar os primeiros passos para realizar um imenso projeto que poderia ter dado um golpe de morte ao Islã: abrir um canal que comunicasse o Mediterrâneo com o Mar Vermelho, de modo a facilitar, à Cristandade, o acesso ao Oriente sem precisar dar a imensa volta pela África. Ou seja, construir o que depois foi o Canal de Suez, em pleno século XVI! Albuquerque chegou também a realizar estudos para um projeto ainda mais audacioso: ele planejou desviar o curso do Nilo, de modo a secar o Egito e, assim, quebrar o ponto central da forte tenaz muçulmana. Pois bem, esses projetos, que pareceriam impossíveis, não eram impossíveis. Em primeiro lugar, porque para homens como Albuquerque nada é impossível. Em segundo lugar, porque existiam os madeirenses. E Albuquerque, em carta ao Rei D. Manuel, propôs que essas obras ciclópicas fossem confiadas aos madeirenses, porque estes já tinham dado provas, na sua pequena ilha, do que eram capazes.
Prossigamos. A Madeira começou a plantar açúcar e a enriquecer-se prodigiosamente, ainda em meados do século XV. Mas, por mais que atraísse forasteiros (e foram numerosos os portugueses do continente e, mesmo, estrangeiros que para lá acorreram nessa fase), a população ainda era muito reduzida.
Por volta de 1460, os habitantes da Madeira eram somente 2310. O Duque D. Fernando – sucessor do Infante D. Henrique na administração da Ordem de Cristo, que exercia jurisdição temporal e espiritual sobre a Madeira – instituiu então um imposto que deveria ser pago, em trigo, somente pelos homens solteiros, para incentivá-los a se casarem. O resultado dessa medida foi eficacíssimo: mais casamentos, mais filhos! 50 anos depois, a Madeira já tinha 15 mil habitantes. O crescimento, em cinco décadas, foi da ordem de 650% – um dos maiores verificados na História. E, a partir daí, a população foi crescendo cada vez mais, pois os madeirenses habitualmente casam cedo e são muito prolíficos. Para dar um exemplo familiar, registro aqui que meu bisavô Antonio Francisco de Andrade, madeirense que casou em 1879 com sua prima Joanna Julia de França, teve três filhos homens que morreram meninos e três filhas, as quais casaram e deixaram descendência. A mais velha – minha avó – teve 19 filhos, e as duas mais novas, respectivamente 12 e 9 filhos. O casal Antonio Francisco e Joanna Júlia teve, pois, nada menos que 40 netos! Três gerações depois, o sangue desses França Andrade corre nas veias de muitas centenas de pessoas, em Portugal e no Brasil.

___

Armando A. dos Santos, licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro da Academia Portuguesa da História e dos Institutos Históricos e Geográficos do Brasil, de São Paulo e de Piracicaba.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Rolar para cima