Divina maternidade

Camilo Irineu Quartarollo

 

 

Da roupa, dos sapatos, do documento e de tudo que se perde pela casa, ela é a primeira que tem de saber. Cadê, manhê? Chega a tal ponto essa cobrança, que é “culpada” mesmo por um amor perdido, por uma vocação malograda.

O recém-nascido sente o próprio chão como prolongamento do corpo da mãe, em cuja barriga sobreviveu por nove meses. Essa simbiose pode persistir simbolicamente, dizem os estudiosos. Com o tempo, mesmo aos filhos adultos, esse sentir do chão comum com ela é tão forte que muitos dizem que o chão lhes sumiu sob os pés ao perder a mãe. A criança chora ao ficar a sós no berço, por medo de que a mãe tenha deixado de existir e, então, descobre outras existências e correlações. A primeira palavra articulada é mã, mamã, é da experiência desse contato bilabial de sucção manhosa. Os resmungos são memórias do ato incorporando expressões na fala articulada – em todos os idiomas a letra M aparece na denominação de mãe, como mother, madre, mama e outras.

A isso tudo também a criança responde, corresponde, devolvendo a feliz parceria, quando passará a se comunicar e articular pela maternidade que lhe vai marcando em seu caráter e vivências a ambos, mãe e criança.

Mãe, todos têm, mesmo os bebês de proveta ou rejeitados. De alguma forma têm, porém a maternidade é vocação divina. Tanto mistério transcorre na relação de maternidade, na geração da vida, que faz parecer fraude as narrativas do Gênesis. O Altíssimo é apresentado como mero oleiro que cria o homem, forma-o já adulto com barro, tal qual se faziam vasilhas no cativeiro babilônico. Se quiséssemos conjecturar e costelas à parte, Deus não seria tão invasivo. A criação divina é mais sutil, diria que feminina, mais “façamos” que o “faça-se” mandão e avesso ao livre arbítrio. Criar é um ato de sensibilidade, trabalho, amor. Com o perdão dos autores sagrados, diria que é quase inenarrável a criação para caber em seis dias, claro que é figurativo.

É a maternidade que traz a encarnação do verbo, da palavra, do humano que fala. O nascimento de Jesus repõe a humanidade faltante do éden, conquanto o criador não era pai humano. O papa João Paulo I afirmou que Deus, além de pai (Abbá) é também mãe. Isso, a meu ver, mostra a visão profética do papa sorriso que afrontou mafiosos, Deus poder de mãe amorável e não de pai chefão – Deus teria poder feminino.

Temos ainda casos de mães que não geraram. A maternidade refoge à simples geração. Muitas vezes mães abandonam os filhos, os quais são criados por outras.

É conhecida a história das duas mulheres que requisitaram a posse de uma criança diante do juízo de Salomão. Em princípio pode se pensar que a mãe fosse a que gritou para não cortar a criança ao meio e cedeu à outra. Porém, não havia exame de DNA e a maternidade se afirmou nesse ato de amor da mulher que cedeu, fosse ou não genitora – de todos os sábios Deus é mais sapiente. Seria mesmo a genitora ou foi a mãe de coração que teve esse gesto?

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Camilo Irineu Quartarollo, escrevente e escritor, autor do livro A ressurreição de Abayomi, dentre outros

 

 

 

 

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