Dia de índio

Camilo Irineu Quartarollo

 

Antes, “todo dia era dia de índio” escreve Jorge Ben e canta magnificamente Baby do Brasil. Os indígenas foram exterminados, acuados, expropriados, dizimados. Hoje são bem poucos. Sobrevivem alguns dos descendentes dos quais estiveram na beira da praia a nos receber como deuses. As boas vindas dos silvícolas foram retribuídas com perseguições e mortes. Os visitantes foram se apossando do pau brasil e da floresta de madeiras nobres que ainda restam. As áreas dos indígenas, antes demarcadas pelos governos, agora são novamente devastadas pela invasão de garimpeiros, caçadores, traficantes da fauna exótica, grandes mineradoras, madeireiras, agronegócio irregular, ausência do governo, expondo a terra em brasa, corpos em cinzas, quase indistinguíveis os animais e galhos retorcidos de dor, noticiados pelo mundo.

Nas aldeias que ainda restam vemos a celebração do Kuarup, do renascer, de se libertar do passado. Ao contrário dos cristãos que celebram enfaticamente a morte de Jesus todos os anos, nossos indígenas celebram uma “ressurreição” a partir de objeto ritual, tronco escolhido de árvore, mediante cânticos e danças. Apesar da família do homenageado, chorosa, o mitológico e ancestral Mawutzinin diz que “seus mortos não podem ser chorados, pois que viverão”. A cerimônia segue ininterrupta até a libertação da alma do morto.

No caso da Paixão de Cristo, a forma lamentosa pela empatia das dores e morte de Jesus, deixando a ressurreição para depois, terceiro dia após e se confundindo no imaginário popular com a reanimação de Lázaro. Parece-me um vácuo litúrgico. A verbalização do fenômeno é pífia, entretanto teólogos como Boff dizem que a ressurreição se dá na hora da morte. Afora os doutores, esse “fundamento” é referencial também nas culturas não-cristãs como a dos silvícolas, e com mais solidez ritual.

No Kuarup, quando uma aldeia faz o cerimonial outras aldeias vêm à celebração. Ao fim do ritual os troncos são rolados pelas crianças às águas para afundar, a alma enfim está liberta. O Kuarup não é luto simplesmente, mas celebração de uma mística comunitária da ressurreição.

Destarte os valores e ciência dos silvícolas, o atual governo que se intitula cristão diz que “quer progresso para o índio”, mas não conhece o indígena.

Nas escolas, a cultura indígena é pouco estudada, pois vista com olhos de branco “descobridor”. Para constar, os indígenas têm vastos conhecimentos de ervas medicinais e muitos remédios patenteados por brancos vieram da aldeia, não dos laboratórios.

À medida que o homem branco banaliza o sagrado e os costumes de outros povos perde seu próprio senso do sagrado. Será que um dia cristãos e indígenas terão um kuarup em comum? O branco busca o paraíso (a felicidade), mas aos silvícolas “a terra sem males” pode ser aqui.

Atualmente, se é que alguém se lembra, eles só têm o dia dezenove de abril.

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Camilo Irineu Quartarollo, escrevente e escritor, autor de A ressurreição de Abayomi dentre outros

 

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