Alê Bragion
Eram dois em um? Mistério. Juntos, eram pés e patas na riqueza do nada ter. Porque quem nada quer tudo tem do que deseja. Eram o pão duro que dividiam na etimologia da palavra: eram companheiros de calçada, de caminhada sem ponto de partida ou de chegada. Eram a fé dos que entravam para a celebração? Eram os cantos canta-que-cantados dentro do templo em frente? Eram mais. Eram os olhos dos santos em estátuas esculpidos. Eram o verdadeiro – o que tanto os fiéis buscam no altar, os esquecidos. Eram, então, mais que dois em um. Eram. Eram o sagrado em patas, em pés, juntos – formando unidade subcutânea leal e espiritual: intrapelos, intrapeles, intracorpos. Eram um, então? Eram. Eram o uno divino, sentados à margem da rua e da vida.
No bocejo longo do cão, era a atitude sempre beata da beatitude. Santidade? São Francisco? São Domingos de Gusmão? Domini Canis! Nas mãos do humano, por sua vez, eram as presas do homem: um pote com a água a ser dividida e o pão ázimo da vida em partilha sagrada. Eram uns latidos e outros se juntando às vozes que ecoavam da missa e se misturavam às buzinas dos carros e às luzes da cidade. Era o jardim da praça, agora, a ágora ideal, Monte das Oliveiras. Era o homem erguendo o pote d’água à altura da cabeça – talvez a conferir se no fundo dele nada havia de mais sujo do que o próprio pote. Era o amigo canino a observar. Depois, era como se o homem repetisse uma tradição que mal conhecia, era o homem fazendo o mesmo com o pão. E era o agradecer – talvez a Deus – pelo alimento a ser dividido com o amigo-irmão.
Era a sarjeta santa onde começavam uma ceia. Nela, se sentavam apenas os que sentiam a dor das almas nas sombras da solidão. Era o homem e seu cachorro, comendo e bebendo em união mística que nenhuma outra há nem houve de tão igual. Era o comer e o beber em Deus e para Deus. Eram seus espíritos e corpos se transmutando na imensidão do simplesmente. Era o fartarem-se de um amor genuíno, gratuito, doído de tão natural – de tão dado de graça. Era o encherem-se de um amor sublime, que é o amor compartilhado à toa. No templo, eram os fiéis ainda a cantar. Feita a ceia pobre e rica em praça pública, era o cão se enroscando debaixo das pernas do dono. Súbito, eram outros seres alados que se achegam, vindos de jornadas semelhantes, de travessias desérticas pelos centros comerciais, vencedores de tentações diabólicas que duram bem mais que quarenta dias e quarenta anos. Eram os irmãos do nada a haver, do nada a ser: eram companheiros da mesma espiritual comunhão.
Em forma de calçada, era a mesa a começar a se fazer contemplada. Quando a conversa se animava, era uma santa garrafa a surgir dentro de uma sacola plástica com marca de hipermercado. Mãos e mãos, bocas e bocas. Era a purificação de corpos e espíritos. Infelizmente, não era mais pão físico, de trigo, o que havia restado – Domini Canis ganhara a maior parte. Mas todos eram felizes sob a alegria socialista do álcool. Seriam, então, doze à ceia? Quem saberia? Eram uns mais barbudos, outros já sem suas túnicas ou vestes. Mas eram todos iguais, em comunismo teológico que filosófico. De repente, era o culto no templo chegando ao fim. Assim, eram os apáticos apóstolos postando-se em pé, rapidamente, para participar da saída dos fiéis – homens santos da Igreja, gente de bem – que lhes dariam algumas moedas (talvez trinta, arrecadas ao final coleta). Então, era o povo que passava. Passava e não via a santa ceia na calçada e de barriga vazia.
Era então o milagre verdadeiro da ressurreição dado ante os olhos cegos dos que procuram o mistério na escuridão, eis o tudo-nada da vida a velar o sono de todos – adormecidos em tempo etílico. Eis o Deus acontecido, nos olhos do companheiro canino, a observar a existência da páscoa cotidiana (canina que humana), invisível que negada, divina que terrena e etérea porque única possível, única possível e real.
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Alê Bragion, doutor em Teoria e História Literária pela Unicamp, editor do portal Diário do Engenho e cronista desta Tribuna desde 2017