Luta de classes na Idade Média?

Armando Alexandre dos Santos

 

Como vimos no último artigo, por volta do ano 1000 verificou-se em toda a Europa a tendência de fortes contingentes populacionais se afastarem das zonas rurais e acorrerem aos burgos em formação. Na ótica marxista, a reunião de populações em burgos e, depois, em cidades, representou um elemento da luta de classes da plebe espoliada contra a nobreza exploradora e opressora que detinha o domínio da terra.

Essa visão não procede, como demonstrou Alain Guerreau, historiador francês de formação marxista que, com liberdade de espírito e senso crítico chegou à conclusão bem diversa. Segundo ele, “é ridículo e absurdo imaginar as relações feudais como a simples relação entre honestos camponeses vergando-se sob o jugo e senhores cúpidos e ociosos que extraíam a renda a golpes de coação extra-econômica. Que tal mito tenha forte valor ideológico, não se discordará; mas há que desembaraçar-se dele claramente, se se pretende fazer trabalho científico.” (O Feudalismo: um horizonte teórico. Lisboa: Edições 70, 1980,p. 217)

No nosso modo de entender, a constituição dos burgos e cidades não foi algo feito contra a estrutura feudal, mas uma consequência do bom funcionamento das instituições feudais (entendidas nas suas duas dimensões, a temporal e a eclesiástica). E num primeiro momento foi, de um modo geral, bem acolhida pela nobreza e pelo clero, que se adaptaram perfeitamente às novas condições de existência.

A tomada de consciência de que essas populações reunidas constituíam uma comunidade com interesses próprios, o desenvolvimento do artesanato, o incremento do comércio, a monetarização, tudo isso foi consequência natural do ajuntamento populacional. Daí decorreu, gradualmente e de modo natural, um atenuamento dos primitivos pactos feudais, tanto nos burgos, como até nos campos, com a gradual eliminação da servidão de gleba. Como salientou o belga Charles Périn, professor da Universidade Católica de Louvain, no final da Idade Média a servidão de gleba, último resquício da escravidão do mundo antigo, estava praticamente eliminada, e a escravidão somente foi reaparecer, com nova força, no Renascimento (Les Lois de la Société Chrétienne. Paris: Librairie Jacques Lecoffre, 1875, 2 vols., passim).

Esse conjunto de fatores permitiu a ascensão, nos burgos, de uma classe nova, a burguesia, que foi crescendo e enriquecendo, e foi disputando passo a passo, durante séculos, o poder com a velha nobreza feudal. As origens e as etapas de desenvolvimento da burguesia, na economia e na vida social do Medievo, foram estudadas por RéginePernoud em um livro de pequena extensão que se transformou em obra clássica, indispensável para quem deseja conhecer a realidade daquele período histórico e também, compreender o advento do mercantilismo e do capitalismo, já nos tempos menos distantes de nós (Les origines de la bourgeoisie. Vendôme: Presses Universitaires de France, 1947).

Entre a burguesia e a velha nobreza, realmente houve algo à maneira de luta de classes, que se prolongou no decorrer de vários séculos, até chegar à Revolução de1789. A burguesia foi cada vez mais ocupando o terreno da nobreza, sem nunca ter desempenhado, junto à população, o papel protetor e a função social que a nobreza durante séculos desempenhou. Será talvez por isso que até hoje a palavra “nobre” tem conotação favorável na memória dos povos, e a de “burguês” tem conotação quase sempre pejorativa?

Em resumo, o feudalismo, entendido nas suas duas vertentes, a temporal e a espiritual, gerou naturalmente o que se poderia designar como “renovação urbana”. Esta é que gerou uma classe nova, que, a partir do comércio e do acúmulo de capitais, cresceria dentro do sistema feudal e, pouco a pouco, se transformaria no câncer que o destruiria. O problema mais profundo é por que isso ocorreu. Não teria sido possível um crescimento natural da burguesia sem que tivesse gerado um mercantilismo desenfreado, um acúmulo desmedido de capitais até o ponto a que chegou com a Revolução Industrial e, nos tempos atuais, com a globalização?Lembre-se, a propósito, que Karl Marx, ao analisar em O Capital o funcionamento da sociedade medieval e as relações de trabalho nas corporações de ofício, as vê favoravelmente, mostrando que havia nessas relações um equilíbrio por onde o mestre artesão não podia se transformar num industrial ou num capitalista, mas todo o sistema corporativo agia de modo a equilibrar o sistema, propiciando benefícios a todos os seus membros de modo equitativo.

Desde já, porém registre-se o fato de que, historicamente, esse processo de hipertrofia da burguesia se deu num contexto de diminuição da influência espiritual da Igreja, de afastamento da Idade Média da antiga visão teocêntrica, de retorno ao humanismo greco-romano etc. A Igreja ainda tentou conter, de alguma forma, essa hipertrofia, com a condenação da usura, a instituição das Ordens mendicantes e a pregação da virtude da pobreza. Mas não foi bem sucedida.

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Armando Alexandre dos Santos é licenciado em História e em Filosofia, doutorna área de Filosofia e Letras, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e da Academia Portuguesa da História.

 

 

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