Armando Alexandre dos Santos
Houve uma grande variedade no desenvolvimento das instituições medievais nas várias partes da Europa. Nada menos condizente com a realidade que imaginar a Europa Medieval como algo homogeneizado e padronizado. As variantes eram muitas, mas, de um modo geral, por volta do ano mil acentuou-se em toda a Europa a concentração populacional em aglomerados urbanos.A população, que até então vivera dispersa pelas zonas rurais, em torno de castelos e mosteiros, foi sendo gradualmente atraída pelos burgos que possibilitavam uma vida diferente, com outras possibilidades e perspectivas. Nesses burgos desenvolveu-se uma nova mentalidade, articularam-se relações novas e até mesmo os costumes, as artes e a cultura em geral adquiriram uma conformação diferente da anterior.
Alguns autores, aplicando linearmente os princípios marxistas, desejam ver na formação desse movimento comunal uma forma de resistência contra o feudalismo. O crescimento dos burgos e sua estruturação seriam, pois, uma forma de luta de classes. Ora, o próprio Marx recomendava que se tomasse muito cuidado na aplicação dos princípios que ensinava, às sociedades pré-capitalistas. Já no século XIX, houve quem procurasse ver, no surgimento das sociedades urbanas supostamente antifeudais do medievo, uma prefigura do que seria, em fins do século XVIII, a Revolução Francesa. Tal ideia, como salienta Jacques Heers, professor da Faculdade de Letras e Ciências de Paris-Nanterre, não passa de “um mito nascido no século XIX, no momento em que se exaltavam as agitações comunais da Idade Média, apresentadas como uma prefiguração, senão um início da revolução de 1789” (História Medieval. São Paulo: Difel, 1981, p. 121).
Sem nos atermos a esquemas ideológicos, perguntemos como surgiu o movimento comunal e quais as consequências desse movimento para o sistema feudal.
Respondamos à primeira pergunta, considerando mais especificamente a realidade da região europeia em que o feudalismo propriamente dito vigorou, ou seja, na França e no mundo germânico – abrangendo também, por extensão, algumas regiões da Itália. Asmesmas considerações poderiam também se aplicar a outras regiões da Europa, mas necessitariam de adaptações pontuais que os limites de espaço deste artigo não comportam.
Vários foram os fatores que, nessas amplas áreas, atuaram para que, em primeiro lugar, a população tendesse a se reunir em centros mais coesos; e, em segundo lugar, para que, uma vez assim reunida, desenvolvesse um senso comunitário para afirmação e defesa dos seus interesses coletivos.
O feudalismo nasceu, como é sabido, num contexto de populações que se haviam dispersado pelas áreas rurais em decorrência das invasões bárbaras (ou “bárbaras”, com aspas, como é mais “politicamente correto” grafar-se hoje em dia). Nesse contexto de ameaça constante, a existência de aglomerados urbanos era particularmente perigosa, pelo atrativo que estes exerciam sobre invasores. A dispersão populacional representava uma forma de defesa, completada pela proteção que os nobres, que constituíam a classe militar, podiam oferecer em troca de serviços e preito de honra.
Tendo cessado a ameaça constante das invasões de povos remotos do Oriente e tendo sido contida a ofensiva maometana proveniente da Península Ibérica, a tendência foi um apaziguamento e uma reordenação da vida, em geral. As estradas foram pouco a pouco se tornando mais seguras, em boa parte como um efeito do próprio sistema feudal, já que competia à nobreza exercer funções de polícia, perseguindo e eliminando bandidos, assaltantes e grupos de out-law, e caçando animais ferozes.
Por outro lado, houve na passagem do primeiro para o segundo milênio da Era Cristã um efetivo progresso nas técnicas de agricultura, o que permitiu, como destacam todos os estudiosos de História econômica medieval, sensível melhoria na produção de alimentos e na saúde da população. Esse progresso se acentuou nos séculos seguintes, de modo tão marcado que, sobre ele, Jean Gimpel publicou um livro que se tornou clássico: A Revolução Industrial da Idade Média (Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1977). Dessa melhoria decorreram o aumento da população e uma natural tendência a utilizar o excedente produzido como moeda de troca (numa primeira fase, no sistema de escambo, mais tarde já se adotando um sistema monetário). Todos esses são fatores que permitiram e favoreceram a natural tendência do ser humano para a vida social, já que o Homo sapiens nunca deixou de ser político no sentido original do termo, ou seja, nunca deixou de ser um animal social.
Outro modo de aglomeração, muito disseminado na região que estamos considerando, foi o de pessoas em torno de edificações religiosas. Numerosas cidades europeias têm origem em torno de velhos mosteiros ou santuários. Não se esqueça que, na pior fase das invasões, quando todas as instituições do mundo antigo se dissolviam, a Igreja permaneceu, se adaptou às transformações e assegurou um elemento de continuidade e proteção paralelo e complementar ao elemento militar. O feudalismo, como salientou o brilhante historiador francês Alain Guerreau – que tive o privilégio de conhecer pessoalmente na UNICAMP – é incompreensível sem o papel da Igreja (O Feudalismo: um horizonte teórico. Lisboa: Edições 70, 1980, p. 244-257).
Prosseguiremos o tema na próxima semana.
Armando Alexandre dos Santos é licenciado em História e em Filosofia, doutorna área de Filosofia e Letras, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e da Academia Portuguesa da História.