Tempo de Pausa

Alê Bragion

 

Já não me lembro mais quem foi que disse que música e literatura assemelham-se porque ambas dão sentido ao tempo. No fluxo narrativo dos dias, na concatenação da passagem das horas, sons e letras entretecem-se, entrelaçam-se, entremeiam-se na costura artesanal do tecido textual da vida. Nos capítulos da existência, nos parágrafos da história, na pauta dos dias, nas linhas do destino, notas e palavras aglutinam-se, tocam-se, escrevem-se, desejam-se, fecundam-se e transubstanciam-se num corpo sagrado que – em primeira instância – não é feito de pão ou de vinho, mas de uma matéria etérea chamada espírito.

Falando da vida, imagino o que seria dela sem esse espírito gráfico-sonoro a imprimir suas marcas no tempo. Pois se o tempo grava na vida os seus traços, se as marcas do tempo se fazem visíveis à força das experiências, também a vida – feita de música e letra – risca no tempo os seus sulcos, cravando nele, em baixo-relevo, suas cicatrizes. Afinal, o que é alma senão uma canção que se entoa a fim de se fazer laços com as fitas das horas? O que é o viver senão o desenvolver de um tema, o executar de uma variação – ora em tons maiores ora em armaduras de clave sombrias?

Em verdade – e como afirmou Nietzsche – sem a música a vida não teria sentido. No entanto, e por sua vez, a música, sem o tempo, também não existiria. Afinal, milimetricamente medida, a música se descreve em valores, em sequências matemáticas que pulsam coloridas na cadência rítmica do existir. E se foi Stravinsky quem afirmou que o jazz é uma tentativa inútil de se tentar fazer caber o máximo de notas num mínino determinado de tempo, então – stravinskianamente pensando – talvez possamos supor ser essa também a mais tola beleza do viver humano. Sim! Talvez Stravinsky esteja certo – e existir não seja mais do que fazer um jazz improvisado a forçar a métrica da vida no limitado compasso dos dias, dos meses, dos anos.

Sendo assim o viver, é no interior de nossas partituras corporais que – como um músico retarda o final de uma melodia, como um ouvinte repete no aparelho a música já tocada, como um leitor voraz evita ler as últimas linhas do romance um dia começado – também nós tentamos parar com os dedos o metrônomo de nossa época, inutilmente procurando inibir o fim de nossa cadência: coda para a qual toda valsa-viva culmina.

Inútil tentativa. Afinal, a música só existe porque existe a pausa. Da mesma forma, se ecoa no tempo a melodia de nossos dias é porque também nós nos articulamos no tempo e nos mantemos solfejando, segundo a segundo, cada nota vivida. Mas, como tudo chega um dia à barra dupla, saibamos sempre que quando nossa peça terminar talvez não tenhamos tempo para uma última saída ou para um bis. Quando shakespeariana nos virmos pavoneados diante do pano que por sobre nós um dia cairá, talvez apenas ouçamos o compasso final da vida a bater, agonicamente, como as notas de uma sinfonia de Beethoven.

Tempo de pausa. Nesse momento, porém, que ao menos o universo nos permita que sejam as nossas palavras – as nossas últimas palavras – plenas do som sagrado da força divina que faz tocar a música do mundo. E que elas, como notas sonoras que são, possam ecoar no tempo faustico dos homens – provando enfim, para os que ficam, tal como afirmou Goethe, que “longa é a arte, breve é a vida.”

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Alê Bragion, doutor em Teoria e História Literária pela Unicamp, editor do portal Diário do Engenho e cronista desta Tribuna desde 2017

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