Sobre o Ícone,  a Palavra e o Intelecto

Gabriel Chaim

 

O texto desta semana trata-se de Iconografia Cristã e seu argumento teológico. Quero retificar ao leitor que o propósito desta coluna é informativo e didático e que não há intenção alguma de proselitismo religioso, apenas a descrição do argumento que embasa uma das práticas das Artes Sacras. Espero, através deste texto, prover ao leitor meios de se entender e apreciar esta arte tão presente nas igrejas do Oriente.

Brevemente, as origens da Iconografia podem ser vistas de duas maneiras: segundo a História e segundo a Tradição. Historicamente, a iconografia pode ser traçada ao antigo Egito Helenístico (chamado de “Helenístico” pois estava sob influência grega), num costume funerário que requeria a produção de retratos para múmias. Esses retratos receberam o nome moderno de “Retratos de Fayum” e serviam para honrar a memória mortos, para que se fossem lembrados de como eram em vida. Por outro lado, segundo a Tradição, diz-se que o primeiro ícone foi pintado por São Lucas Evangelista em inspiração divina ao ter uma visão da Virgem Maria e do Menino Jesus. A representação dessa visão é chamada de “Theotokos”,  Mãe de Deus, Portadora de Deus.

 

(Um dos retratos de Fayum sob um corpo mumificado. Perceba a influência grega, helenística, muito diferente dos hieróglifos que estamos acostumados a associar ao Egito Antigo).

 

A Iconografia trabalha a ideia de invocação. Propõe que a representação pictórica, imagética, pode invocar a presença do que está sendo representado. Os Retratos de Fayum fazem isso através do advento da memória explicado da seguinte forma: os familiares e amigos do falecido, ao perceberem a semelhança do retrato em comparação à anatomia do rosto do morto, invocam à memória lembranças do indivíduo especificamente retratado. Em São Lucas, porém, não há intenção alguma de semelhança anatômica, mas metafísica. Os ícones cristãos são simbólicos por excelência, representam uma ideia, não uma pessoa em específico (como é o caso dos retratos de Fayum). Quando o Evangelista pinta o Theotokos, ele não está necessariamente representando uma mãe e seu filho, mas uma cadeia densa de símbolos que assume sua síntese formal através da imagem pintada. Para ilustrar o que quero dizer, uma brevíssima leitura deste ícone pode ser feita da seguinte maneira: o observador, ao se deparar com uma imagem do Theotokos, vê a representação do amor puro e incondicional do ágape (o vínculo que liga duas almas que se compreendem) como uma mãe e seu filho; o filho, vestido em togas como um filósofo grego, ama profundamente sua mãe como um filósofo ama o Conhecimento. A relação simbiótica entre Amor e Conhecimento manifesta o que há de divino no homem, trazendo-o próximo a Deus. Portanto este ícone (assim como toda iconografia cristã) propõe uma ponte que liga os conceitos dogmáticos da fé através de imagens simbólicas. Os ícones são substancialmente ferramentas de adoração que auxiliam o iconódulo (o adorador de ícones) a conectar-se com o divino.

 

(Nossa Senhora do Don, 1380: Theotokos grego, atribuído ao pintor Theophanes).

 

Os Ícones Cristãos são semelhantes à Palavra Escrita. As palavras são, em essência, símbolos; são sons que, quando emitidos, pronunciados, falados, atingem aos ouvidos e conectam-se à ideias (arquétipos) que são acessadas através do Logos, da inteligência (como visto anteriormente, no segundo texto desta série). A iconografia trabalha como o veículo visual de ideias, tal como a palavra escrita representa visualmente a palavra falada. O ícone, contudo, representa visualmente a Palavra de Deus. Isso é um conceito fundamental para o Cristianismo pois, segundo a tradição cristã, Jesus é a própria Palavra de Deus encarnada. A importância de um título como esse é feita clara no parágrafo que inaugura o Evangelho de João: “No princípio era a Palavra, e a Palavra estava junto de Deus, e a Palavra era Deus. Ela existia, no princípio junto de Deus. Tudo foi feito por meio dela, e sem ela, nada foi feito de tudo o que existe. Nela estava a vida e a vida era a luz dos homens. E a luz brilha nas trevas, e as trevas não conseguiram dominá-la” (João 1:1-5). Em grego, língua em que o Evangelho de João foi originalmente escrito, o termo “Palavra” (também encontrado como “Verbo” nas traduções em Portugês) é “Logos”, o mesmo termo usado para representar a razão, o intelecto.

No Cristianismo, Jesus é a alegoria do ícone supremo, a ponte que une a humanidade a Deus, o próprio Logos.

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Gabriel Chaim, pintor, bacharel em Design Gráfico, [email protected] – instagram: @gabrielluizchaim

 

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