Recordando uma grande  dama luso-brasileira (Dra. Nelly Martins Ferreira Candeias)

Armando Alexandre dos Santos

 

Faleceu em São Paulo, no último dia 27 de janeiro, a Profa. Dra. Nelly Martins Ferreira Candeias, que durante 15 anos, de 2002 a 2017, esteve à testa do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo e pode, com justiça, ser considerada a salvadora da centenária instituição.

Ao longo da primeira metade do século XX, os Institutos Históricos estaduais conheceram algumas décadas de imensa glória. Seus membros eram a elite intelectual e moral, o que havia de melhor nos respectivos estados. Eram advogados, médicos, engenheiros, professores, artistas ou simples particulares que se dedicavam ao estudo da História, da Geografia e ciências afins de modo autodidático, por vezes com certa medida de diletantismo e, sem dúvida, pagando tributo aos gostos oratórios e estéticos do seu tempo.

Sou possuidor de um rico acervo de recortes de jornal, selecionados, classificados e colados em um álbum pelo Dr. José Tôrres de Oliveira, presidente do IHGSP de 1940 até, se não me falha a memória, 1950. Ele recortou e guardou tudo quanto os jornais e revistas publicaram sobre o Instituto nesse período. É uma documentação reveladora do imenso prestígio de que, então, gozava o Instituto. O jornal O Estado de S. Paulo mandava um repórter, todas as 4ª.s feiras, fazer a cobertura das sessões semanais do IHGSP e publicava sempre, na íntegra, as atas respectivas, porque entendia que se tratava de matéria de interesse para o grande público.

Com toda a certeza, nos vários estados, do mesmo prestígio gozaram, nessa época, os Institutos Históricos locais. Na segunda metade do século XX, porém, dois grandes problemas iriam afetar profundamente os Institutos e ameaçariam seriamente sua sobrevivência:

1) O surgimento dos cursos universitários de História. A Universidade do Brasil, na década de 1920, a Universidade de São Paulo, fundada em 1934, as várias Universidades Católicas, a partir da década de 1940, e outras mais foram instituindo cursos de História e Geografia, inicialmente conjugados, depois separados. Foram se multiplicando os historiadores de formação universitária. Ocorreu então de modo muito vivo a diferenciação dicotômica entre o modelo amadorístico e diletante dos IHGs e o científico das universidades. Houve rivalidades e desentendimentos. Entrou também o fator ideológico, pois as universidades, de um modo geral influenciadas pelo modelo gramsciano, davam formação de esquerda, enquanto os Institutos, mais conservadores, tendiam a manter uma linha ideológica diversa. Durante algumas décadas, esse problema se fez sentir. Hoje, está praticamente superado. De um lado, praticamente todos os membros dos IHGs têm títulos universitários, de outro os títulos universitários se multiplicaram tanto… que já não têm muitas vezes o mesmo significado e o mesmo prestígio de antigamente.

2) O segundo grande problema é de caráter econômico. Em meados do século XX, quase todos os Institutos, com o IHG Brasileiro à frente, procuraram aplicar seus recursos na edificação de prédios, dos quais ocupariam uma parte e alugariam os andares restantes. Parecia a tranquilidade financeira assegurada para o futuro. Infelizmente, os centros de cidades foram muitas vezes se degradando, novos bairros e novos centros urbanos foram surgindo e atraindo os investidores. Os imóveis da região central das capitais foram perdendo valor, os aluguéis foram baixando e, pior ainda, tornou-se cada vez mais difícil encontrar inquilinos dispostos a pagá-los. No momento, isso nos aflige ao IHGSP, como também aos seus congêneres em todo o Brasil. Por outro lado, os Governos não dão, muitas vezes, a ajuda que deveriam dar. Os IHGs são associações de direito privado, mas prestam importante serviço público, são quase todos declarados de utilidade pública, e mereceriam melhor atenção das autoridades, do que aquela que de fato recebem.

É aqui, nesta conjuntura de crise, que chegamos a 2002, quando chegou, em boa hora, a Dra. Nelly Martins Ferreira Candeias à presidência do IHGSP. Ela é proveniente da USP, professora titular de Saúde Pública e, autodidaticamente, historiadora e autora da História da Faculdade de Saúde Pública da USP. Aposentada, ao mesmo tempo que seu marido, o nosso saudosíssimo amigo Dr. José Alberto Neves Candeias, também professor titular da USP, estavam a ponto de mudar-se para Portugal, onde ambos tinham ampla parentela, ou para Londres, cidade em que haviam residido e da qual tinham ótimas recordações. Mas, convidada a se candidatar à presidência do IHGSP, renunciou a uma tranquila aposentadoria na Europa e, com seu marido, aqui ficou. E aqui começou sua luta para salvar o Instituto. Luta dura, luta terrível, luta constante. Mas luta vitoriosa.

Encontrou o Instituto praticamente falido. A dívida acumulada imprudentemente pela gestão anterior chegou a atingir, em 2003, a casa dos 240 mil reais, em valores da época (hoje, significariam muito mais). A maior parte da dívida era à Previdência Social. Os funcionários eram numerosos e consumiam, com seus salários e parte dos respectivos encargos sociais (pois nem todos eles eram devidamente pagos) quase 90% do que rendiam os aluguéis do prédio. Era um caso de bancarrota que parecia inevitável.

Lembro de um consócio que, na época, sustentava que a única solução seria fechar o IHGSP, entregar seu acervo inteiro a alguma Universidade que se encarregasse de pagar as dívidas acumuladas, e, acrescentava, “até poderemos talvez pleitear que futuramente se coloque uma placa, nessa Universidade, homenageando o extinto IHGSP pelos bons serviços que prestou durante um século”…

Dra. Nelly aceitou o desafio e enfrentou a situação. Reduziu o quadro de funcionários. Por exemplo, instalou elevadores automáticos que dispensam ascensoristas. Foi criticada, chegou a ser acusada de pôr em risco a vida dos visitantes que poderiam ser “guilhotinados” (sic) por perigosos elevadores que fechavam sozinhos! Enfrentou incompreensões, boicotes, ações trabalhistas, até ações criminais. E de todas saiu vitoriosa. Conseguiu, como reconheceu a Revista da FAPESP, fazer um “centenário e revigorado IHGSP”.

Esses esforços estão, em larga medida, documentados nas nossas revistas e, sobretudo, no livro que a Dra. Nelly publicou sob o título “IHGSP – 10 anos de memória paulista”.

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Armando Alexandre dos Santos é licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e da Academia Portuguesa da História.

 

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