Oh, valei-me, minha Santa!

Camilo Irineu Quartarollo

 

O ano da vacina vai começar. Que tempos? Acabouo auxílio emergencial, estourou o cartão de crédito, colapsou o bom senso e o cidadão é vítima.

Aosricos isenções fiscais, anistia de débitos, juros baixos para empréstimos,mas cobrança implacável apobres que sempre pagam suas dívidas, como o Zé do burro, da peça O pagador de Promessas, de Dias Gomes.

No negócio divino ninguém se mete, é o fiel e o santo. Assim é lá no Sertão. Padre fala de Deus, aconselha, perdoa no confessionário, mas quando o cristão está aflito, esquecido, no seu íntimo ele apela aos santos de sua confiança e mesmo ao terreiro próximo. Foi lá que Zé do Burro fez sua promessa à Santa Bárbara, ou à Iansã dos aflitos. O caipira fez voto em favor do seu amigo Nicolau, o burro, que sofrera um acidente numa noite tormentosa de chuvas, raios, trovões e desespero.

Quem era o burro? O Zé disse ao padre que achava que o animal fosse gente. O burro era seu amigo e tinha alma, quando ia à missa o equino ficava fora, de fora como o Zé acabou ficando com sua cruz.

O homem tem uma fé intransigente e para cura do seu burro fez a promessa de entregar a cruz no interior da Igreja de Santa Bárbara.O padre não o deixa entrar. O bispo tenta compelir o romeiro a trocar a penitência feita por outra. Zé do burro recusa, porque fez promessa à santa e não ao prelado– responde e fica nas escadarias. O catolicismo mantém a disciplina do senta, levanta, ajoelha e tradição, por vezes tão rígidas que até Jesus só entraria se pusesse coroa dourada, capa vermelha e tivesseos olhos azuis e a pele rosada e, fora, os clamores aumentam na escadaria da igreja e o foco é o Zé que não arreda o pé do lugar nem pode entrar na igreja.

Por fim, o romeiro diz que fez a promessa à Santa, à Iansã ou a ele mesmo até – que importa?! – e vai adentrar a igreja com a cruz, é promessa, éum voto feito. Sem grandes conjecturas intelectuais ou doutrinárias a força espiritual do Zé é impressionante.

Na festa da padroeira os filhos de Iansã lavam a escadaria com água de cheiro e Santa Bárbara ganha corpo, mãos e pernas na bela dança de Iansã. Há confronto com a polícia e o romeiro é alvejado mortalmente. Oh, valei-me, minha santa – ao som do berimbau os filhos de Iansã carregam o devoto morto de Santa Bárbara para dentro do templo para concluir seu voto, no ápice do drama, é de arrepiar.

O filme ganhou a palma de ouro (1962) na versão de Anselmo Duarte que captou bem a questão da imagem, cujas tomadas de cenas são mais fortes e de contraste no branco e preto e romeiros andando em perfil já no início do filme, numa mostra narrativa pungente. O jogo de imagens também se dá nos papeis sociais como a do bispo e padre, mas a contundência é a fé de Zé do burro, contra o preconceito à religião afro e sua afirmaçãopela vida, mesmo da de um burro, vale penitência à Santa Bárbara, vale à Iansã.

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Camilo Irineu Quartarollo, Escrevente e escritor independente, autor do livro A ressurreição de Abayomi dentre outros

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