Camilo Irineu Quartarollo
Marquei com antecedência. A pandemia foi cruel, tapou a cara de todos, nos fez abaixar os olhos e umedecer os panos da face. Com medo do contágio, pisando em ovos e frasco de álcool gel na mão fui. Olhei pelo portão, ela estava vindo à sala. Não poderia deixar que me abraçasse, me beijasse – a orientação era evitar contato próximo.
Sentamos, eu num banco e ela a dois metros olhando-me estranho. Sosseguei-me, não me abraçou, não me quis beijar, ufa. A etapa do contato físico foi superada. Então, sem assunto, as perguntas atmosféricas, não ia chover, não tinha trovões, mas um silêncio enorme que me lembrava quando caí da cama na infância e não conseguia subir pelo extenso lençol que hoje me lembram cortinas. Acho que o silêncio é um véu, um lençol, uma mortalha. Os olhos dela ainda estavam voltados para mim e tão diferentes, eu não era mais eu para ela e a idosa bem parecia uma jovem de um olhar sem a sisudez do tempo que me educara.
– Tá me reconhecendo?
– Claro! Como está sua mulher, seus filhos?
– Quem eu sou pra senhora?
– Senhora? Rsrs. Você é meu irmão!
Nossa, definitivamente não me reconheceu. Levantei o boné para ela ver a calva de herança paterna, baixei um pouco a máscara e então.
– Ah, você se parece com a família do…
– É, mãe, o tio que era casado e era meu padrinho. Sou seu filho, o do meio.
– Era não, “é” seu padrinho e você tem de respeitar ele, viu.
Nossa, esse tio já falecera, aliás todos já. Mas ela está no direito de deslembrar, de não mais ficar guardando coisas. Foram tantas preocupações que carregou na vida com sete filhos que ao cochilar ouvia um ou outro resmungar.
– O que você está olhando?
Nem me dei conta, parei de falar e me lembrava que ela sempre usava um avental, lavava roupa. Ah, aquele avental quando o via dependurado na cadeira lembrava de suas andanças a catar ovos ao passar por alguns ninhos distantes, não precisava nem cesto, era tudo no avental, prático. Vinham os ovos, a verdura da horta sobre a mesa. Quem poderia prever que naquele avental cabia o mundo. Várias vezes vi aquele avental ficar bojudo e depois… diziam que meu pai comprava crianças na cidade. Como se eu acreditasse! Se fosse compra ia devolver alguns por defeitos de fábrica, inclusive eu. A mãe guardava e escondia tanta coisa ali no avental que quando estava dobrado na cadeira eu ficava pensando nessa entidade.
Não, ela não ia se lembrar de mais nada, pensa que eu sou um irmão dela, acho que está regredindo no tempo.
Despedi-me dela e ia levantando do banco, mas a enfermeira que a veio buscar gritou:
– Senhor, volte, sua mãe é aquela ali, não é essa.
Mas que coisa! Me enganei mesmo, mas agora já escrevi esse artigo com jeito de causo. Estão vendo o que a mente faz com a gente, se eu tivesse tomado o meu remédio… kkk, mas afinal, quantas mães cabem na memória de um filho? Todas.
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Camilo Irineu Quartarollo, escrevente, escritor independente, autor de A ressurreição de Abayomi dentre outros