José Renato Nalini
O dia das crianças é uma data propícia a uma retórica piegas. O futuro do Brasil, a nossa esperança, o maior tesouro da família e declarações que tais. Mas em 2020, após esse confinamento físico e mental que nos foi imposto pela praga, talvez seja oportuno fazer uma reflexão e um mea culpa. A Humanidade tem um trajeto paradoxal pelo cosmo. No caso, restrito a um pequeno e humilde planeta, imerso em uma galáxia de menor importância diante da imensidão do universo.
Nem sempre as crianças mereceram o carinho que hoje se apregoa como sentimento pressuposto, de que se impregnam os pais, os demais familiares, e também os que não integram o núcleo doméstico. É comum afirmar-se que o indivíduo que não consiga enxergar numa criança o seu próprio filho, não tem aptidão para ser pai. Ou mãe, conforme o caso.
A paternidade, hoje, faz um rodopio com a hierarquia dos valores. Todos os pais descobrem, a expressão é de Luc Ferry, “que uma criança desperta sentimentos estranhamente diferentes das outras formas de amor, por mais forte, apaixonado e autêntico que sejam”.
O entranhado afeto dos pais de hoje em relação a seus filhos é um sentimento desinteressado. As crianças são amadas por aquilo que são, sem que se espere nada em troca. Nem sempre foi assim. Durante muitos séculos, as crianças eram consideradas uma consequência natural das relações sexuais e não despertavam o furor amantíssimo que hoje deflagram no seio de suas famílias. Há celebridades que não hesitaram em entregar seus filhos à “roda dos enjeitados”. Era comum a menção aos que não sobreviviam. Ainda hoje, em alguns ambientes mais rústicos, fala-se em prole que “vingou” e prole que “não vingou”.
Mas o amor que declaramos pelas crianças não nos fez mais sensatos, responsáveis e consequentes com nossos atos e omissões.
Estamos legando um planeta muito machucado. Maltratamos tudo aquilo que deveria ser preservado. Não temos ainda outro planeta para aceitar nossa migração, quando a Terra se exaurir. E isso não está muito longe. Ainda assim, continuamos a sacrificá-la. As águas estão poluídas, os dejetos se amontoam em todos os espaços, o verde desaparece, continuamos a investir na fabricação de armamentos, enquanto ainda existem milhões de crianças que passam fome.
A pandemia escancarou as iniquidades brasileiras. Somando-se os invisíveis, os excluídos, os hipossuficientes, os desempregados, os subempregados, os desalentados, os pobres que passaram a ser paupérrimos, os paupérrimos que se tornaram miseráveis, chegamos a uma legião. Temos coragem de dizer que estamos cuidando bem do futuro da Terra?
Sabemos que Nação mal educada não tem futuro digno. Temos plena consciência de que educação é a única chave para transformar o mundo, a começar de um Brasil que tem tudo para dar certo, mas que sofre os embates da cupidez, da ignorância, da má-fé, da incapacidade de distinção entre o que é do povo e o que é meu e de tantos outros males. Entretanto, só fazemos discursos. Todos são especialistas em educação. Mas quem assume o compromisso de alfabetizar um analfabeto, de reduzir a deficiência de um analfabeto funcional, de propiciar qualificação nas tecnologias da Quarta Revolução Industrial a um analfabeto digital?
De doutrinas, teses, dissertações, ensaios e consultorias, o Brasil está prenhe. Na prática, o que a sociedade faz para reduzir esse vergonhoso déficit educacional, que nos coloca sempre na rabeira do mundo civilizado?
Enfim, o dia da criança deve servir para o remorso dos que ainda têm consciência. Do propósito de fazer algo de concreto pelo resgate de nossos semelhantes. Da intenção de corrigir o descaso, a omissão, a negligência e o comodismo. As crianças continuam a merecer nosso amor. Mas merecem também o nosso convicto pedido de perdão.
Para quem se comover, ainda que em parcela mínima, com esse desabafo, desejo um feliz dia da criança!
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José Renato Nalini, reitor da Uniregistral, docente da Pós-graduação da Uninove, presidente da Academia Paulista de Letras (APL); foi presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo