Camilo Irineu Quartarollo
Qual livro você prefere? O digital é de fácil acesso, barato e você leva a biblioteca toda dentro de um pen drive ou puxa da nuvem e lê embaixo de uma árvore, sem nenhuma poeira, ácaro ou mancha de sebo, nem mesmo cantos retorcidos pelo folhear, com risco de um corona vírus. Uma leitura asséptica.
No mundo pós-moderno, tem de se entrar no assunto logo de início, prevalece o tempo exíguo para leitura, explica logo ou lhe deixo – diz o leitor ao livro, mas se eu gostar de você…
Nos bancos duros das carteiras de escola do século passado líamos grossos volumes, vistas boas de infância, mas palavras de um vocabulário difícil, até a metade do livro era um penar, depois era a descida, ufa, começava a ter sentido, as chaves que o escritor plantara no início começara a abrir portas, mas hoje não se escreve mais assim. Aliás, a boa literatura tem suas técnicas milenares e estilos, cuja literatura remeterá aos bíblicos e gregos.
Chato aquele livro que o autor acha estar sentado num trono e vai numa digressão de adjetivos, impondo características a cada coisa que acha, como se o mundo fosse estático. Não, hoje você não descreve um personagem, você o apresenta na ação ocorrendo, junto com suas características e o faz reconhecido nelas, até seu interior fica patente.
Outros usam pontuações próprias, respiram mal pelo jeito. A literatura precisa de gramática, de registro também, não é oralidade, desta é subsidiária. Ah, se pudéssemos tornar presente na palavra escrita a energia da palavra falada e cantada! Por isso amo o teatro e a música, que podem expressar na fala do intérprete, que cria o lugar dela no mundo, a morada do eu leitor. A literatura pode beber disso e desanuviar-se, mas cabe bom uso da língua e semântica.
As palavras perdem o sentido com o passar do século, décadas, até mudam de significado, tal como a palavra formidável, que era algo estranho, feio, parecido com formiga, hoje é, você sabe. Então, se não tivermos uma boa gramática, boa pontuação, palavras tecnicamente bem colocadas, vamos deixar “hieróglifos” à posteridade, uma literatura boa, mas efêmera. Ora, a preservação do bom texto veem-se nas escrituras, escritas por muitas e sábias mãos e estilos, mas sempre dentro de signos arquetípicos. A primeira impressão é que seja leitura difícil devido ao peso que lhes impõem as religiões e doutrinas sisudas, mas a bíblia fala de humanidade e transita por todos os estilos aguçando a memória e o entusiasmo – no sentido grego da palavra entusiasmo (ter um deus dentro de si). Ela tem o condão da totalidade, da religação do homem à divindade, e nela, nem o bom humor falta, apesar de que as concepções sisudas e conservadoras perderam o senso da humanidade dos textos desses antigos artificies da palavra e transmissores da oralidade.
Muitos vão aos livros, como diz o fundador do cristianismo, querendo encontrar a vida; mas acho que o ser humano mesmo ateu, sem profissão de fé, está sempre buscando alguma explicação para o seu mistério e alguma metáfora para o seu viver. O livro dá esse elo, liga-nos ao ponteiro externo da existência, visto que somos passageiros. Contudo, atentem-se às metáforas, a mentira também pode se esconder nela como erva daninha.
Qual livro você prefere? Digital ou de papel? Eu prefiro o bom livro.
____
Camilo Irineu Quartarollo, Escrevente, escritor independente, editor digital, autor do livro A ressurreição de Abayomi dentre outros.