Adelino Francisco de Oliveira
A situação da moradia em Piracicaba, para diversas famílias, já é uma questão dramática e desesperadora. A cidade tem passado, nos últimos anos, por um processo acelerado de favelização. Com elevado número de favelas, a precarização habitacional já é um fenômeno de exclusão social na cidade. Sem uma política pública habitacional adequada e justa, que efetive o direito à moradia, um contingente significativo da população vive, literalmente, às margens da sociedade, tendo negado o seu direito básico de morar com o mínimo de dignidade.
A gritante contradição, que marca a perversidade socioeconômica brasileira, é também uma dura realidade do cenário urbano da cidade: sofisticados condomínios e empreendimentos imobiliários de luxo passam a disputar espaços ao lado de moradias precárias e favelas. Quando morar deixa de ser compreendido como um direito humano básico e passa a ser reduzido a condição de mera mercadoria, não há lugar para os mais pobres. Na lógica especulativa do mercado imobiliário, sobram casas, na medida em que há um superávit habitacional, apesar de existir um número considerável e alarmante de cidadãos que simplesmente não têm onde morar e reclinar a cabeça.
A ocupação Comunidade Renascer talvez se configure como uma representação exemplar dos limites extremos de exclusão social e negação do reconhecimento de cidadania que uma sociedade pode produzir. Na ocupação, que abriga mais de 400 famílias, não há saneamento básico; não há transporte público; o direito à água é sumariamente negado; o acesso à energia elétrica também é clandestino; as famílias se aglomeram em pequenos barracos de madeira, muitos ainda com piso de terra batida.
No contexto da pandemia, em plena crise sanitária, não há a presença de agentes públicos de saúde, informando e implementando ações de prevenção ao novo coronavírus. É uma realidade sem as mínimas condições para se fazer o isolamento social, sem acesso a máscaras, sem água potável para se fazer a higiene constante das mãos, sem sabão, sem álcool gel, nem água sanitária, nem nada. A Comunidade não conta com nenhum tipo de aparelho público. A ausência do Estado é simplesmente total. É como se a prefeitura e toda a estrutura da cidade não existissem. Ou melhor, é como se a Comunidade Renascer não existisse para o poder público. São mais de 400 famílias invisibilizadas.
Apesar de tantas carências e irresponsável ausência do Estado, ferindo de morte os princípios da democracia, cidadania e justiça, há muita vida na Comunidade Renascer, que acaba por nos ensinar novas dinâmicas de sociabilidade, sedimentadas na partilha, no valor comunitário e na solidariedade.
A experiência das hortas comunitárias, espalhadas ao longo da Comunidade, produzindo alimentos para serem compartilhados coletivamente, em uma dinâmica de trabalho em grupo, constrói as bases para uma segurança alimentar mínima ao mesmo tempo em que ensina a ética da corresponsabilidade, da empatia. Há também os almoços comunitários, nos quais a comida é literalmente repartida, com a vaquinha da mistura, em um ambiente de encontro e alegria. Há um projeto de construção de uma cozinha comunitária. A preocupação da Comunidade é sempre que ninguém fique sem ter o que comer.
É de encher os olhos e acalentar o coração os esforços para a construção da Escola Comunitária, espaço de atuação das professoras voluntárias. O direito básico à educação passa a ser minimamente garantido por meio do trabalho coletivo, que se organiza para erguer rudimentares paredes, formatando o lugar de formação, ensino e aprendizagem para as crianças. Certamente a Escola Comunitária abrirá possibilidades de educação de jovens e adultos, criando estratégias de superação do analfabetismo funcional, que ainda é tão presente na realidade de Piracicaba.
A ocupação Comunidade Renascer nos desafia a forjarmos um novo jeito de fazer política, como arte para se alcançar o bem coletivo, reinventando a cidade como espaço de todos. A luta e a esperança da Comunidade Renascer são civilizatórias. A moradia, a alimentação, a cultura, o esporte e a educação são direitos fundamentais, que devem ser garantidos por uma sociedade que se revela capaz de reconhecer a dignidade de cada vida humana. Que Piracicaba possa Renascer, abrindo-se, com a primavera, à cidadania, ao direito e a toda justiça. Vamos juntos, com esperança sempre!
______
Adelino Francisco de Oliveira, professor no Instituto Federal, campus Piracicaba, Doutor em Filosofia e Mestre em Ciências da Religião; [email protected]