Armando Alexandre dos Santos
O absolutismo dos reis, que foi se acentuando ao longo dos séculos XVI, XVII e XVIII, contribuiu muito para a preparação do clima em que detonou a Revolução Francesa. Não a causa única, nem a principal, mas sem dúvida foi uma das causas dessa Revolução.
A propaganda revolucionária, habilmente conduzida, exagerou muito certos pontos fracos do Ancien Régime e mentiu deslavadamente em outros. A versão divulgada pela propaganda revolucionária, acerca do período anterior à Revolução, foi “desmitificada” por grande número de obras sérias e bem documentadas, como, por exemplo, o clássico “L’Ancien Régime”, de Frantz Funck-Brentano (Arthème Fayard, Paris, 35ª ed., 1926, 574 p.). A mitologia revolucionária, por exemplo, transformou a Bastilha – em cujas masmorras gemeriam centenas de pobres infelizes aprisionados por arbitrárias ordens que o soberano expedia nas suas famosas lettres de cachet – em símbolo da prepotência e da tirania do rei.
Na realidade, a Bastilha era uma velha fortaleza parisiense transformada em prisão de Estado, onde cumpriam pena presos de categoria elevada. Quando de sua tomada violenta, a 14 de julho de 1789, estavam aprisionadas apenas 7 pessoas…
As tais lettres de cachet eram cartas expedidas pelo rei, muitas vezes a pedido das famílias dos detentos, para assegurar a eles um aprisionamento discreto, não escandaloso, numa prisão real e não em cárcere comum. Os prisioneiros frequentemente levavam para a Bastilha seus criados, sua mobília, seus livros, e tinham vida muito confortável. Em outras palavras, era um privilégio ser preso na Bastilha… Privilégio, aliás, que a República brasileira a seu modo mantém ainda hoje em dia, pois assegura aos prisioneiros com curso superior o privilégio da prisão especial. E até presos apedeutas podem usufruir desse privilégio a título excepcional… como tivemos exemplo ainda recentemente na sede da Polícia Federal de Curitiba.
De qualquer forma, é sempre verdade que o absolutismo régio foi um excesso censurável, e que posto esse excesso era previsível – mas de nenhum modo justificável – que os revolucionários se aproveitassem dele como pretexto para seus péssimos desígnios.
Em 1815, após a queda definitiva de Napoleão, foi restaurada a monarquia na França. Sim, ela voltou, mas já não era a mesma. Após o tufão revolucionário, de tal modo estava minado e comprometido o relacionamento entre os monarcas e os seus povos, que pareceram indispensáveis as constituições escritas. O que antes era um relacionamento natural como que familiar, entre pais e filhos, passou a ser um contrato lavrado em cartório, entre partes mutuamente ressentidas e desconfiadas.
Na Monarquia tradicional, anterior ao desvirtuamento do princípio monárquico que foi o absolutismo régio, o poder dos reis não estava regulamentado por constituições escritas. Mas estava assente em costumes e em tradições que tinham força de lei e se observavam com muito maior fidelidade do que hoje se obedecem às constituições escritas.
O conjunto de costumes e tradições que se foram gradualmente sedimentando no corpo legislativo de uma nação, no tocante ao governo do reino, ao relacionamento do monarca com seus governados, às regras de sucessão dinástica daquela nação – esse conjunto, muitos doutrinadores monárquicos chamam de “Constituição Histórica”.
Se as monarquias orgânicas não tivessem decaído – a partir da hipertrofia do poder real, pela monarquia absolutista – é bem possível que elas tivessem alcançado níveis ainda mais elevados de perfeição, e que nesse caso, ao cabo de um tempo maior ou menor, uma codificação escrita fosse o natural coroamento do processo, assim como as Ordenações o foram, no Reino português, para o Direito Civil, e o Código de Direito Canônico o foi na Igreja.
Nessa hipótese, as constituições escritas teriam um significado per diametrum oposto ao que tiveram. Historicamente, não há como negá-lo, o que se deu é que elas marcaram precisamente a decadência das monarquias. Joseph de Maistre observou com razão que, quando as nações sentiram necessidade imperiosa de escrever constituições que durante séculos não lhes tinham feito falta, esse era um sinal evidente de que algo andava mal nessas nações.
Imagine-se um país em que houvesse necessidade de uma lei prever e regulamentar minuciosamente como deve ser, dentro dos lares, o comportamento familiar, quais os deveres e os direitos recíprocos do pai, da mãe, dos filhos, dos avós, tios e sobrinhos, quais as penalidades e as multas que cada infração acarretasse etc. Nesse país estaria destruída, ou pelo menos muito comprometida, a vida de família.
Não digo isso, obviamente, para negar que a monarquia que desejo para o Brasil atual deva ter uma constituição escrita. Nos dias de hoje, ainda tão influenciados pela Revolução Francesa e por tudo quanto se lhe seguiu, seria impensável que não a tivesse. Apenas estou comparando, numa perspectiva histórica, modelos de monarquia e mostrando que a monarquia orgânica anterior à Revolução Francesa e anterior a esse grande desvirtuamento do princípio monárquico que foram as monarquias centralizadoras e absolutistas, é de si mais excelente do que aquela que desejo para hoje.
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Armando Alexandre dos Santos é licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e da Academia Portuguesa da História.