José Renato Nalini
O município brasileiro ganhou status constitucional e passou a fazer parte da Federação assimétrica em 1988. Assimétrica, porque embora considerado entidade federal, não mereceu tratamento consentâneo com sua importância. Os quase seis mil municípios brasileiros lutam com dificuldades. Ficam submetidos a uma União exauriente dos recursos nacionais e perdulária em dispêndio incompatível com a fragilidade da economia.
Aquilo que era péssimo antes da pandemia, tornou-se ainda pior. Fala-se com desenvoltura no desrespeito ao teto de gastos públicos, sem lembrar de nosso histórico inflacionário e a reduzida confiabilidade do Brasil perante os investidores internacionais. Se isso acontecer, o que é mais do que provável, serão outras décadas perdidas. Tragédia para uma geração que terá de ser bastante severa ao julgar os descalabros de nossa insensata omissão.
Omissão, sim. A maior parte dos brasileiros acredita piamente na providência estatal. Tudo está confiado ao governo. Responsável pelo nascituro, desde a sua concepção. Pré-natal, acompanhamento da gestante, depois pelo parto, pelas vacinas, pelas fraldas, pela alimentação. Em seguida, pela pré-escola, ensino fundamental, médio e Universidade. Tem de oferecer todos os direitos fundamentais prometidos pela generosa Constituição, que é uma cornucópia de bens da vida e deixou portas abertas para a inclusão de quantos outros a imaginação humana vier a criar.
Acreditar no Estado, considerá-lo onisciente e onipotente é via paralela à nostálgica visão imperialista. Nunca houve república verdadeira no Brasil, se houvesse um raio X do que significam os valores republicanos. Daí a velha e surrada tática das homenagens, as reverências ao poder, as espinhas dorsais complacentes de quem, pretendendo participar do banquete estatal, ainda que sejam migalhas, se curva despudoradamente diante do transitório chefe.
Enquanto isso, os munícipes enfrentam uma situação surreal. Mais da metade da população sem esgotamento sanitário. Milhões sem água. Outros milhões sem emprego. Educação capenga. Mobilidade prejudicada por políticas perversas de segregar a periferia, distanciando-a do lugar de trabalho. Precisa falar da saúde, ou os quadros escancarados pela pandemia são suficientes?
A tragédia teria um resultado benéfico se fizesse uma parcela considerável do povo acordar para a realidade. Colocar freios a um poder que dilapida escassos recursos para destinos perfeitamente dispensáveis. São fartos os exemplos: propaganda institucional, Fundo Partidário, Fundo Eleitoral, empresas que só existem para esgotar o Erário, como aquela encarregada de implementar o Trem Bala para o vexame da Copa no Brasil. Onde o trem? Como esse absurdo, muitos outros existem. Excesso de Estado e mínima dignidade humana.
As coisas têm de começar no município. É ali que as pessoas nascem, vivem e morrem. A tendência a permanecer nos lindes da cidade é reforçada com o pânico gerado pela peste. Por isso as eleições de 2020 – que deveriam ser realizadas eletronicamente, para não acelerar a morte dos incautos eleitores que se dispuserem a comparecer aos locais de votação – são muito importantes.
Acenou-se com a extinção de municípios desprovidos de receita para atender às suas finalidades. Embora se considere remota a hipótese, ela chegou a ser pensada pelos responsáveis pelas atuais políticas estatais. Isso mostra a indigência de mais da metade das cidades brasileiras. Elas precisam reagir, se não quiserem continuar na fila de esmolas da União e do Estado.
Para as que continuarem assim, uma séria advertência: estão minguando os meios financeiros para atender a todas as necessidades. Serão dias de lamúria. Lembrarão os lamentos e ranger de dentes das Escrituras.
Os municípios precisam se reinventar. Precisam investir na sua vocação natural. favorecer o empreendimento individual. Estimular a criatividade. Cada microempresa gera tributo para os cofres municipais. O empreendedorismo inovador é algo que tem de ser levado a sério em todas as localidades. Favorecer iniciativas como a formação de viveiros, o cultivo de orgânicos, o resgate de receitas caseiras com produtos locais, o turismo regional, tudo tem de ser levado a sério. Se as políticas macro hostilizam a natureza e o ambiente, um conjunto crescente de micropolíticas pode fazer a diferença.
Talvez seja o momento propício para se levar a sério a regularização fundiária. Todo município tem uma área territorial e, com certeza, parte dela estará em situação irregular. A regularização fundiária alavanca a economia local. Para o poder público, gera a receita do IPTU. O comércio local receberá incentivos porque o possuidor, ou ocupante, ou até o invasor clandestino de ontem, depois desse processo de regularização que envolve a cooperação de múltiplas áreas, se tornará um animado proprietário que edificará, reformará ou tornará mais valorizado o seu imóvel.
Tudo converge nessa nova fase, para fortalecer as cidades. O chamado “novo normal” será de início o “anormal”. Menos locomoção, menos viagens, menos vontade de ultrapassar fronteiras, mas a valorização do espaço doméstico. A redescoberta do lar. A tendência a permanecer nos lindes territoriais do lugar onde se nasceu ou que se escolheu para viver é algo que não pode ser desprezado.
A verdadeira autoridade pública é aquela com a qual o cidadão tem oportunidade de ter contato direto. É o Prefeito o administrador de núcleos consolidados de pessoas que têm os seus interesses pessoais vinculados ao destino daquela área territorial. Por isso a importância de eleições locais que considerem a capacidade dos candidatos de devolver a esperança aos moradores de seus municípios.
Os brasileiros estão assustados, amargurados, desprovidos de esperança de que as coisas voltem a ser como eram antes da praga. Incumbe aos administradores municipais encontrar fórmulas de reanimação da gente local e de mostrar que a vida, a convivência e os negócios dentro de suas cidades ganharão força nova a partir de 2021.
Nunca faltou ao brasileiro engenho e arte para reagir às adversidades. Nunca houve, neste século, algo tão adverso como a pandemia do coronavírus. É hora de inverter a equação de passiva submissão à vontade da União e fortalecer o município. A instância onde as coisas acontecem e os destinos são selados. A vida do munícipe tem de ser uma vida de benefício para o solo natal ou escolhido. Os homens definem-se no préstimo às causas comuns e na utilidade de suas vidas para melhorar a vida dos demais. E é na cidade onde isso em regra acontece.
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José Renato Nalini, reitor da Uniregistral, docente da Pós-graduação da Uninove, presidente da Academia Paulista de Letras (APL); foi presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo