José Renato Nalini
Ganhou recorrência no Brasil o chamado “garantismo”, verbete introduzido na doutrina por Luigi Ferrajoli, professor de Filosofia do Direito da Universidade de Roma. Seu livro “Direito e Razão-Teoria do Garantismo Penal” foi disseminado mais no Brasil do que na Itália e logo gerou polarização a dividir os profissionais do universo jurídico.
O garantismo de Ferrajoli impõe a observância estrita das normas concretizadoras de um processo equilibrado, que não permita confusão entre quem acusa e quem julga. É algo ínsito ao Estado de Direito de índole democrática, opção de grande parte das Constituições ocidentais, inclusive no Brasil.
Subjacente à polêmica, a separação de fronteiras entre moral e direito. Ferrajoli sustenta a tese da “laicidade do direito” e da “laicidade da moral”, a significar “a recíproca autonomia entre as duas esferas: de um lado, o princípio segundo o qual o direito não deve ser utilizado como instrumento de mero reforço (ou mesmo de uma determinada) moral, mas somente como técnica de tutela dos interesses e das necessidades vitais; por outro lado, o princípio inverso e simétrico segundo o qual a moral, se autenticamente praticada, não necessita da sustentação heterônoma e coercitiva do direito, e até mesmo a exclui e refuta”.
No Brasil, o garantismo tem sido argumento para se exigir o exaurimento das possibilidades de discussão judicial de um delito, por um dos lados, aquele que exerce o direito de defesa. E é combatido por quem considera excessivo o rol de oportunidades para o debate sobre uma situação de nítida infringência da lei penal.
Ambos os enfoques teriam sua razão de ser?
É interessante observar que a questão de fundo continua indefinida: a separação entre direito e moral. Não existe distinção nítida e absoluta. O direito é permeável à introdução de juízos de valor. A positividade não deixa de indicar uma rota teleológica, ou seja: a lei deve apontar para o “dever ser”. É normal afirmar-se que o direito é o “mínimo ético” e Ferrajoli fala em “constitucionalismo ético”. Um pacto fundante deveria refletir a concepção política, econômica, filosófica, sociológica, histórica, mas também moral e jurídica, do povo sobre o qual vai incidir.
Isso não impede que uma Constituição tenha preceitos criticáveis sob o prisma estritamente moral. Um exemplo, aliás por ele citado, é o da Segunda Emenda à Constituição dos Estados Unidos da América, a assegurar o direito do cidadão de portar armas. Para Ferrajoli, não apenas contrário a moral, é ainda mais nefasto, pois criminógeno.
Por sinal, foi o que ele citou em recente entrevista concedida ao jornalista David Lucena (FSP, 25.7.20). Indagado sobre como enfrentar a criminalidade em países com altos níveis de violência como o Brasil, respondeu: “A primeira medida elementar deve ser a proibição radical de armas, que são os principais instrumentos de violência e morte. Os dados estatísticos são impressionantes: o número de assassinatos na Itália em 2018 foi de 345, dos quais 142 consistiam em feminicídios; no Brasil, por outro lado, foi de 57.341. A razão dessa enorme diferença está no fato de que na Itália ninguém sai armado, enquanto no Brasil, como de fato nos EUA e no México, todos se armam de medo”.
Embora de conhecimento de todos, essa realidade parece não preocupar os responsáveis pelas políticas públicas tendentes à edificação de uma Pátria justa, fraterna e solidária. Promessa do constituinte de 1988 ainda tão longe de se concretizar. E aí surge uma outra ideia de “garantismo”, mais trivial, menos sofisticado. O que seria urgente garantir ao Brasil, seria um ambiente ensejador de convívio pacífico, de favorecer o empreendedorismo, de criatividade, de educação de qualidade e de multiplicação de perspectivas para uma juventude em sua maioria desguarnecida de condições de um futuro promissor.
O garantismo em sentido jurídico, incessante pregação de Luigi Ferrajoli, continuará a habitar a doutrina, as defesas, os recursos, a prolífica jurisprudência dos Tribunais. Servirá para justificar os insatisfeitos com a infinita possibilidade de reapreciação dos mesmos temas, diante do sistema recursal caótico, fortalecidos a reclamarem penas mais elevadas, redução da maioridade penal, intensificação da próspera indústria do cárcere. Estes invocarão o excesso de garantismo. Expressão que, para Ferrajoli, não tem sentido. Para ele, “garantismo é respeitar as garantias penais e processuais, que são, muito mais e muito antes que garantias de liberdade, garantias de verdade”.
Os mesmos que bradam pela prisão em segunda instância e que não enxergam racionalidade em uma estrutura que prestigiou o quarto grau de jurisdição, utilizar-se-ão dos fundamentos do garantismo, até às últimas consequências, quando enfrentarem o MP e a peregrinação pelos Tribunais.
A verdade, muita vez, adquire tonalidades diversas, a partir do ponto pela qual é encarada.
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José Renato Nalini, reitor da Uniregistral, docente da Pós-graduação da Uninove, presidente da Academia Paulista de Letras (APL); foi presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo