O grito

Camilo Irineu Quartarollo

 

“Independência ou morte” – o brado heroico, e retumbante, espraiado pelo riachinho Ipiranga, plácido ante um grito revolto de um imperador intempestivo. Belo cenário de um quadro e de um hino, mas sabe-se que o príncipe foi encontrado subindo de mula a encosta da serra de Santos e lá lhe passaram os papeis para assinar, depois de uma disenteria que lhe acometeu pelos suspensórios, mais para crônica que conto épico.

Parece que o quadro pintado por Pedro Américo, o grito, desagua em outro grito estridente, na paleta famosa de Edvard Munch, o grito surdo da angústia, quando a obra dá vazão ao tormento humano.

Independência ou morte?

O imperador põe na pauta política a opção independência, mesmo que custe a morte. Nos bastidores, D. Pedro busca negociações com os ingleses para aceitarem a independência política do Brasil. Os embaixadores ingleses põem em cláusula de aceitação que haja a abolição da escravatura. A África e seus portos também são domínios ingleses. O imperador protela, dizendo que precisa aguardar a Assembleia constituinte para decidir. A velha política dá seus jeitinhos e somente depois de sete anos os deputados, muitos deles traficantes de escravizados, dão o sinal do acordo.

Neste século XIX muitos querem ver o país como nação, ex colônia de Portugal, e vem a propaganda épica, entretanto o país é a antiga colônia de exploração, não de colonização, mantém um povo sob jugo, o contingente mais numeroso às margens não do Ipiranga, mas da nação, como o forma os hebreus no antigo Egito. A nação é forjada por braços de brasileiros que não votam, não têm salários, não têm opções humanas de vida ou de independência. Aprofunda-se a divisão de classes, enquanto a classe política abastada se unifica ao imperador com seus negócios e benesses, independentes.

A velha política brasileira, a mesma de D. João VI, que não brigava com Carlota Joaquina, simplesmente promovia seus admiradores e esbanjava muito na corte imperial. No início do século a frota da família real chegara ao Brasil acompanhada pelos ingleses, que passam a dar as cartas, dar o tom comercial, visto que eram os senhores dos mares de então. O porto do Rio de Janeiro cujas águas tranquilas e ventos atlânticos anticiclones propiciavam que navios batizados com nomes de santos trouxessem mercadorias da África, carga humana, pelo Atlântico Sul e fossem vendidas nas Américas.  No tempo de D. Pedro I, os donos de fazenda e homens ricos mandavam na política e tinham acento na câmara, fazendo “suas” leis. Ao maior contingente da população, negra e escravizada, a independência não chegou. Independência?

Nada. Ao arrepio do acordo assinado com a Inglaterra e da lei brasileira, davam um jeitinho de trazer mão de obra escravizada, sob as vistas grossas das autoridades nacionais. A Inglaterra queria todos os portos, dominar o comércio e o fez, mas o tráfico brasileiro…

Quem é o povo do Brasil?

Nos estertores da monarquia os grandes cafeicultores discutem que sem a mão de obra escrava ficarão à mingua, que o país vai se endividar. Na câmara do Rio de Janeiro requerem leis que os indenizem – a eles, não aos escravizados! Como? Pois está tudo registrado em cartório suas propriedades, cujas almas da África também. Vem a abolição, os fazendeiros retalham o filho idoso de D. Pedro I, rei D. Pedro II.

Vem uma república composta por militares forjados na Guerra do Paraguai. Que é isso, república? Os rincões do Brasil desconhecem, visto que foram alijados da cidadania e independência. Os presidentes civis são conhecidos do palácio e indicados uns pelos outros, conforme interesses econômicos que representam, cada um governa um pouquinho, como a política café com leite, São Paulo e Minas Gerais. Não, esse bolo aí não se divide não.

O Brasil fica por conta dos humores, ciúmes, soberbas, dessa gente. Quando virá, de fato, a nova política? Uma política na qual haja inclusão de todos os cidadãos brasileiros e construtores da pátria, “da” Política.

Sem inclusão social não há independência, mas morte de agonia lenta e silenciosa sob as botas do Estado.

Independência ou morte? O grito se tornou simplesmente alternativas sombrias proferidas em 1822. Em 2022 os ponteiros históricos emparelham 200 anos. Qual será o grito?

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Camilo Irineu Quartarollo, escrevente e escritor independente, autor de A ressurreição de Abayomi dentre outros

 

 

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