A quem a Justiça serve

José Renato Nalini

 

O sofisticado equipamento chamado Justiça engloba inúmeros compartimentos. Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública, Polícia, Procuradorias das Fazendas e demais extensões desse gigantesco ente chamado Estado, Advocacia e Serviços Extrajudiciais. Pode englobar também parcela significativa da Administração Penitenciária.

As atividades desenvolvidas por esse conglomerado são fartamente abastecidas pelas milhares de Faculdades de Direito e unidades de especialização em Ciências Jurídicas. Nem por isso é possível afirmar que o Brasil seja a nação mais justa do planeta.

Indicativo de que as pessoas se sentem injustiçadas seria o elevado número de processos judiciais em curso pelos Tribunais. Já chegamos a cem milhões, quando a população era de duzentos milhões de habitantes.

Falsa e enganosa tal situação. Quem mais litiga é o próprio Estado. É uma espécie de antropofagia. Estado injetando cada vez mais escassos recursos financeiros na máquina de que se servirá para dirimir conflitos que poderiam ser solucionados na esfera administrativa. É uma cadeia que se retroalimenta. Pois há quem sustente que o Judiciário também sirva como instrumento de arrecadação de tributos. O que justificaria, num perverso feed back, a criação de mais unidades jurisdicionais, pois nutririam a famélica vocação do fisco, à espreita de qualquer deslize do contribuinte.

A perpetuação do esquema se deve também à anacrônica formação jurídica. Treinar o estudante de direito a decorar o infinito acervo de legislação, doutrina e jurisprudência, não chega a motivá-lo a procurar fazer justiça. Isto poderia advir de uma nova concepção de aprendizado das ciências jurídicas. O direito não deixa de ser ferramenta para redução das desinteligências, para tornar mais respeitoso o convívio, para edificar a Pátria justa, fraterna e solidária prometida pelo constituinte de 1988.

Adestrar para a espontânea observância do que é justo reduziria bastante a proliferação de controvérsias. Todavia, a ênfase das escolas de direito é uma devoção quase fanática pelo processo. A forma ocupa a maior parte das elucubrações dos juristas. A primeira resposta a qualquer questão que surja é o ingresso em juízo.

Muita resistência às técnicas inteligentes de composição consensual dos conflitos. Disciplinas como psicologia, argumentação, lógica, retórica da persuasão, são sumariamente excluídas da grade acadêmica. Mas sempre haverá espaço para o processo em sua teoria geral, depois minudenciado em múltiplas especializações: processual civil, penal, comercial, tributário, constitucional, ambiental, urbanístico, informático, eletrônico, internacional, telemático, etc. etc. etc.

Tudo na busca de estratégias que tornem a discussão judicial de um determinado tema real, uma arena de astúcias na qual o vencedor nem sempre é aquele munido de razão e mais prejudicado.

Houve um movimento na década de noventa, em que o Banco Mundial quis debater os problemas do Judiciário na América Latina. Divulgou um Documento em que os indicadores de ineficiência e ineficácia implicavam em a) atraso; b) extensa acumulação de casos; c) acesso limitado à justiça; d) falta de transparência e previsibilidade das decisões e e) frágil confiança dos cidadãos no sistema.

Estabelecer diagnósticos sem focar as causas de pouco adianta. Promoveu-se reforma do Judiciário. Criaram-se as defensorias públicas. Consolidou-se o status do Ministério Público, a instituição mais poderosa da República. A criação de Faculdades de Direito foi acelerada.

Não se modificou a formação jurídica, nem se investiu num modelo de concurso de recrutamento para as carreiras dela provenientes que priorizasse as competências socioemocionais. Tudo continua a favorecer um quadro que é uma contradictio in re ipsa: não é raro que a Justiça possa afligir ainda mais o aflito. Na preservação da estrutura com cinco ramos de Judiciário, quatro instâncias e dezenas de possibilidades de reapreciação do mesmo assunto, a Justiça serve mais a quem não tem razão. O devedor consegue prazos que o mercado não oferece, nem o sistema bancário, nem as instituições financeiras. Os melhores talentos conseguem detectar as vulnerabilidades do ordenamento processual e obtêm inacreditáveis prazos. Enquanto aquele que tem razão chega à conclusão de ser inegável o acerto de Mestre Joaquim Canuto Mendes de Almeida: “Na verdade, não há direito de ação. É tamanho o sacrifício de quem enfrenta a Justiça, que esse instituto deveria ser chamado “ônus de ação”.

As vicissitudes e a álea do Judiciário obrigam muita vez o injustiçado a fazer acordo desvantajoso. Na linha do “antes um mau acordo do que uma boa demanda”. Mas com o ressaibo amargo de quem sabe que um sistema de justiça eficiente garantiria outro resultado.

Os pensadores que oferecem obras doutrinariamente consistentes e providas de fundamentos científicos, bem poderiam também colaborar para o aprimoramento funcional de um equipamento que, a despeito do empenho de tantos devotados, continua a produzir vítimas. Lamentavelmente, as que nele acreditaram e que, não raro, saem frustrados e descrentes na Justiça dos homens.

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José Renato Nalini, reitor da Uniregistral, docente da Pós-graduação da Uninove, presidente da Academia Paulista de Letras (APL); foi presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo

 

 

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