Deus está vendo que não tenho causo nem caso com ele – ou, melhor escrevendo, cum Ele. Se num conto a igreja nem o santo em que o fato se deu não é por conta de Deus nem de espanto. Nem pense. Nem tente. Nem tanto. O negócio é que esse negócio de igreja e altar mexe com gente exaltada, férvida que fervorosa, do lugar. Sabe como é? Arre! Que mexirica e mexirico têm freguês pobre e freguês rico – e língua mole em dente cariado dá no ouvido do patrão e do empregado. Então, conto sem contar tudo – por precaução. E só. Para que não haja de haver choro sem vela no final desta crônica novela – quase das oito – que vou narrar. Que Deus Bach me proteja – ôxi! – ou Oxalá.
Era nos idos em que se podia – no por aqui das igrejas pias do sacrossanto mistério das Ave-Marias – em dia de casórios, um de tudo aprontar. Santo Padre! E eu – nesse porém, sem beira nem bem – com meu violininho desafinado, por décadas toquei por uns trocados para o povo casar. No lombo da história, vi e ri desse “de tudo”, entretenimento gostoso (sinal de ironia aqui!) que se chama casamento religioso (ave!). Vi noiva carregando cachorro, toquei trilha sonora do ET, vi convidados chegando de paraquedas (de charrete, de helicóptero, de burro), vi noivos no bar da esquina da igreja (aí, Deus! Louvado Seja!) e fui até convidado para tocar num motel, para um casal, pós-enlace matrimonioso, dar o ponta-pé inicial na Lua de Mel.
Mas deu-se incerta vez nesse tudo, num casório, que segui tocando minhas quatro cordas tortas do altar da igreja e até as portas do templo esplendoroso todo ornado em flor que no dia seguinte costuma enfeitar defunto. E assim foi que assim fiz. Toquei minha matraca vestido no garbo, de casaca e verniz. O povo, olhando e chorando – como é de costume – aderia à cena macunaímica de sarapantar em que eu me via. Quando cheguei à porta por onde deveria entrar a noiva, o coral começou a cantar. Eita, beleza! Tudo certo! Tudo no lugar! Canta que cantar! E dá-lhe a Marcha Nupcial inteira. E a noiva? Nada. Besteira. Marcha Nupcial outra vez. Mais outra. Outra de novo. E nada da noiva dar o seu ar.
De molho e de olho, sapeei que por debaixo da porta uma fumacinha começou a passar. Foi a fumaça branca se alastrando devagar por tudo. O coral cantando o repertório que tinha. O povo em pé em fala-fala. A noiva? Nada. Só mistérios. Era setembro, me lembro – e o destino quis. O coral, já sem ter o que cantar, emendou uma sonora “Noite Feliz”. E nada da noiva. A fumaça branca como neve virou cinza, como a vida. E em meio à “Noite Feliz” a nave da igreja se viu invadida por uma fumaça cinza sentida. Era o de espantar. Incêndio? Fogo nalgum lugar? Passados os vinte minutos mais longos que a eternidade, o padre berrou num susto de impaciência, mandando abrir a porta a qualquer custo.
A porta se abriu cumprindo-se a vontade do padre-gentil. E o povaréu todo viu, na porta do templo, a noiva chamuscada e chorosa – entrando desgostosa em marcha de enforcamento. Atrás dela, um séquito batia, ajoelhado e ambulante, as mãos no tapete de palhinha rente e flamejante. Foi o que nunca se viu. A máquina de fumaça, que a noiva havia contratado, deu curto-circuito – e o tapete de palhinha seca, virou chama, virou brasa, fogo de chão. A fumaça branca – que era para ser pouca – substanciou-se numa neblina louca que engoliu o mundo. E o coral, como um coro de condenados no inferno, seguia cantando no ar gris: “noite feliz, noite feliz” – e a noiva entrando.
Pois se é noite, que feliz seja. Quando a noiva, chorando à fuligem escorrida, chegou no altar da igreja, alguém mais feliz que atrasado lembrou de lembrar de cortar o tapete ao meio. E corre que corre tesoura e tesoureiro, anjo do demo ou do Senhor. Fez-se: e o tapete foi cortado e o incêndio apagado no meio do corredor. Viva! Viu-se o casório em fumaças de benzimento natural num tanto que o padre, por bem ou por mal, preferiu não acender o turíbulo debaixo do ostensório – pois o casal já estava defumado até o fundo da alma perdida nesta e noutras vidas (se houverem e vierem).
Noite feliz. Noite infeliz. Que nasceu renascida, em Pira (onde mais seria?), das cinzas benzidas, a Noiva Fênix jamais inigualada. Noite Feliz. Noite infeliz. A noite. E a Fênix partiu casada – e nunca mais se viu. Que assim foi. Assim seja. No para todo. Amém.