1º de agosto em curso

Camilo Irienu Quartarollo

 

Dia da fundação de Piracicaba, com suas lendas, vultos e assombrações, que ainda nos rondam. Somos de nome indígena, fluímos com o rio Piracicaba, onde os peixes vêm desovar, contracorrente, param de cansados e se aventuram ao eterno Salto, ao abismo, ao fervedouro de águas no ruidoso borbulhar do corpo líquido do rio, numa ascensão mística.

Desde os primeiros habitantes, pelo rio desemboca a história em saltos, em momentos, no rumorejar incontido quase sinto os indígenas sentados ao pôr do sol pegando seus peixes que pulam nas pedras do Mirante. Ribeirinhos da cidade baixa se sucedem às tribos extintas do lugar, o caminhar por aqui está marcado pelas pegadas de animais e pessoas desaparecidas que ressurgem na orla desse ilustre passageiro, o rio Piracicaba. Quase que digo, com a licença poética e dos historiadores, que os peixes fundaram a cidade, o peixe para, o rio escorre suas águas num ciclo de renovação.

O refrigério da rua do Porto, na caminhada pela rua da prainha, onde muitos trabalhadores do Engenho e da Boyes por lá descansam as vistas, onde eu via do alto do Bongue, em menino ainda.

Nossas águas falam por encantos e lágrimas. Nós pertencemos mais a elas que elas a nós, de tanto passar, não é o mesmo rio, diria Heráclito. As águas sulcaram o leito, descreveram seu curso, aonde vamos irão depois, filhos das águas.

Se quiséssemos filosofar estaríamos no lugar sem lugar, na utopia, lugar espiritual onde podemos construir um mundo, ou melhor, reinventá-lo como fez o Elias dos bonecos, Nhô Lica e tantos personagens lendários. Piracicaba flui, ninguém segura sua história, aqui é lugar de passageiros. Das mulas que iam pela estrada do picadão (Moraes Barros) por trilhas até Minas Gerais. Aqui muitos afluem à festa do Divino, na memória dos muitos que morreram na peste, num tempo em que se reverenciavam os mortos seus ou dos outros. Piracicaba marca a vida de muitos e a água dadivosa limpa num fluir de mundos e sublimam ao manto do azul celeste pelas serras aplainadas de São Pedro.

Podemos aprender muito só olhando o rio, enquanto uns comem peixe, outros passeiam, outros olham a multidão deste lugar. Daqui deste torrão. Piracicaba das engenhocas de pinga e Engenho tombado, muitos filhos dos quilombos vinham carregar as sacas de açúcar, dia e noite; enquanto as mulheres fiavam na Boyes vidas entrelaçadas ainda presentes nos olhares fumacentos das chaminés, reverberando silhuetas sisudas aos fumos de uma realidade de Piracicaba do século XIX, nos estertores da Abolição ainda se traficavam crianças aproveitadas de outras paragens, até que na lei chamada de áurea por fim, a cidade era a terceira no Estado em números de pessoas negras cativas e marginalizadas na lavoura.

Piracicaba também é o seu entorno que as águas do rio não molham, mas proliferam veios que as raízes puxam e a Cobrona se levanta e conta a sua história à miudeza do chão, dos grotões e da vida do caipiracicabano com seu falar dialetal.

Amar Piracicaba não é fechar os olhos às suas mazelas, mas nos lavar e arrepender nas águas restauradoras do rio que batiza a cidade e os amantes desta terra, de toda ela.

Feliz aniversário.

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Camilo Irineu Quartarollo, escrevente, escritor independente, autor de A ressurreição de Abayomi dentre outros

 

 

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