Será a minha vez?

João Salvador

O meu maior temor é que um dia eu tenha que escrever meus textos, à base de receitas de bolos, de chocolates caseiros, ou de escrever trechos de Os Lusíada, seguidamente, como protesto por não poder falar o que penso. Durante a ditadura militar, cada jornal adotou um jeito próprio de resistir à presença de censores nas redações, apresentando receitas de bolos, geralmente simples e tradicionais, de conhecimento comum da maioria dos lares brasileiros, como bolo de fubá ou de cenoura. Às vezes, as receitas eram incompletas, terminavam do nada, no meio das instruções. Outra pedia um quilo de sal. Eram sempre inseridas logo antes da impressão, sempre que havia espaços em branco deixados por textos de tamanhos variados cortados. Em raras ocasiões, o título das receitas era uma alfinetada em certos políticos, fazendo referência ao sobr enome deles nos ingredientes. Nem sempre o produto final da receita era possível de comer.

O legado das receitas de bolo se justapõe aos indicadores de informação reprimida. Nas redações, quando se sabia que algo havia sido censurado, o ambiente era muito tenso e a autocensura dos repórteres era uma prática de segurança.

Não resta nenhuma dúvida de que, no cenário atual, desenha-se um tempo perigoso para falar, discutir, escrever, enfim, para emitir opiniões. O Congresso parece nem notar, pela baixa resistência aos antibióticos políticos, os quais podem recrutar e calar muita gente. Em um regime autoritário, a rota é bem traçada, em conta-gotas e homeopáticas, que pode não estar muito longe da verdade, dentro do cenário político atual, porém merece uma dose de cautela.

Lá fora, todos sabem do grau de censura em andamento e a passos largos. Aqui, porém, muitos não se dão conta, ou “fazem de conta”. Os bolos e as cicatrizes que vieram do passado, estão prestes a serem revividos, caso congresso não acorde e saia de seu sono profundo, ou da anestesia indicada por agentes apropriados, para entorpecê-los.

O pior é que hoje, 27, será votado pelos togados a regulamentação das redes sociais, na qual dizem haver relatos tóxicos, apelativos, inapropriados, antidemocráticos. Espera-se o bom senso dos ministros, para não acabarem de vez com a nossa liberdade de expressão, a nossa democracia. Os que forem a favor, não há como protestar, exceto se um dia submeterem aos sufrágios das urnas.

Não quero receber o legado das receitas de bolo como indicadores de informação reprimida e nem comer um bolo de fubá numa cela apropriada.

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João Salvador é biólogo e articulista

 

 

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