Armando Alexandre dos Santos
Falei, no último artigo, do talento multifacetado de Cecília Meirelles. Talvez a designação de polígrafa seja a mais adequada para ela. É na poesia que mais a celebramos, mas como jornalista, como educadora, como autora de livros infantis, didáticos e paradidáticos, como prosadora, contista, cronista e até no teatro marcou presença. Dominava diversos idiomas e também como tradutora foi fecunda. Devia ter uma autodisciplina e uma capacidade de trabalho descomunais, pois a amplitude e a diversidade de sua obra são impressionantes.
Ela dominava os principais idiomas europeus, conhecendo bem o francês, o castelhano, o inglês, o italiano e o alemão. Familiarizou-se também com o russo e o hebraico, e chegou a estudar o sânscrito e um dialeto indiano moderno. Conseguiu traduzir para o português poemas de Rabindranath Tagore, sendo por isso galardoada na Índia com o título de Doutora honoris causa da Universidade de Delhi. Traduziu também, dos idiomas originais, obras de Dickens, Pushkine, Rilke, García Llorca e outros mais.
Os livros que escreveu ou traduziu elevam-se a muitas centenas.
Mas, sem a menor dúvida a obra principal e mais conhecida de Cecília foi o Romanceiro da Inconfidência, publicado em 1953, dois anos depois de ela, com 50 anos de idade, se ter aposentado do serviço público federal. É uma obra da maturidade de Cecília, longa, composta por 86 poemetos que, no seu conjunto, descrevem e cantam os mais diversos aspectos e as mais variadas personagens da Inconfidência Mineira. Naturalmente, a autora segue a visão prevalente no seu tempo do que foi a Inconfidência, mas se permite muita liberdade interpretativa, com uma grande margem de licença poética – aliás, perfeitamente admissível numa obra literária que não se pretende historiográfica.
Esses poemetos foram escritos em variados estilos, mas predomina o estilo clássico que Cecília, embora filiada à escola modernista, dominava na perfeição. É – note-se – um estilo clássico de versos por assonância, muito frequente na Literatura espanhola, menos frequente na luso-brasileira. As rimas não são consonantais, mas vogais. A pessoas menos conhecedoras, parecem versos absolutamente livres, mas não o são.
O Romanceiro da Inconfidência pertence tipicamente ao gênero épico – que é talvez o mais difícil e o mais nobre dos estilos literários.
Segundo Teófilo Braga, os povos nas suas fases de crescimento e afirmação tendem a privilegiar o estilo épico, em que os valores nacionais e os respectivos mitos de origem são proclamados e cantados. Nas fases de maturidade e plenitude, sem desprezar o épico, a tendência é ganhar corpo e prevalecer o estilo lírico – em que prevalece a explicitação dos sentimentos e afeições humanas. E nas fases em que os povos envelhecem e tendem para o seu declínio, tende a prevalecer o estilo trágico ou dramático, em que são descritas, como um retrato da sociedade, as paixões humanas menos nobres e as doenças morais dos indivíduos e dos grupos sociais.
Há, no Romanceiro, elementos dos três gêneros, mas o que prevalece, no conjunto é o épico. Falaremos na próxima semana, para concluir esta série comemorativa de Cecília Meirelles, dos outros gêneros que marcam presença no Romanceiro da Inconfidência.
Licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro da Academia Portuguesa da História e dos Institutos Históricos e Geográficos do Brasil, de São Paulo e de Piracicaba.