A coisa

Walter Naime

“A Coisa” aparece sem aviso, silenciosa e invisível. Seu poder, no entanto, é devastador. Onde quer que toque, toda forma de vida sólida se desfaz, transformando-se em um espesso “suco escuro”. Nenhum organismo escapa. Basta um toque, e o processo começa: pele, músculos, ossos, tudo derrete em questão de minutos. O que antes era um ser vivo, robusto e concreto, torna-se uma poça sem forma, irreconhecível. A rapidez com que age é surpreendente e aterrorizante. Quando termina, resta apenas um resíduo líquido, sombrio, que se espalha lentamente pelo chão, um testemunho do que havia sido.

Essa ideia não é nova. Filmes de ficção científica, como “A Coisa”, exploraram o medo da dissolução, da perda de controle sobre nossos próprios corpos. O terror de ser transformado em algo irreconhecível e irreversível. No entanto, “A Coisa” aqui não é apenas um ser destrutivo. Sua capacidade de transformar tudo em líquido vai além do físico; ela é uma metáfora da liquidez da modernidade. Assim como “A Coisa”, o mundo em que vivemos dissolve nossas certezas e convicções. O que antes parecia sólido, permanente e imutável agora se torna instável, escorrendo pelas nossas mãos como água.

Nossas relações, nossas identidades, até mesmo nossas crenças, se transformam e se adaptam a um ritmo que muitas vezes não conseguimos acompanhar. A liquidez do mundo moderno nos coloca em uma posição de vulnerabilidade constante, assim como as vítimas de “A Coisa”. O sólido, o estável, o previsível – tudo se dissolve diante da rapidez dos tempos atuais. Não há como escapar ou se proteger completamente; tudo é fluido, tudo muda.

A velocidade da transformação de “A Coisa” é o que mais causa medo. Não há como se preparar para o momento em que ela atacará. Um instante de solidez é seguido pela dissolução rápida e completa. O medo não vem apenas da destruição física, mas da perda da própria identidade, daquilo que nos faz ser quem somos. Imagine estar diante de “A Coisa”, sem poder reagir, vendo seu corpo e sua vida se liquefazerem. O que antes era concreto e familiar vira uma substância escura, sem forma e sem sentido.

Mas, como em toda boa história, há uma reviravolta. O que parecia uma condenação definitiva toma um rumo inesperado. Um dia, sem qualquer aviso, o “suco escuro” começa a borbulhar. Lentamente, o líquido se transforma em vapor, subindo aos poucos, até desaparecer por completo. Primeiro, pequenas ondas de vapor se levantam, e, em seguida, toda aquela substância se evapora no ar. O ambiente, antes tomado pelo caos, fica limpo, como se nada tivesse acontecido. “A Coisa” fez sua transformação e, em seguida, evaporou-se.

Nesse final surpreendente, percebemos que “A Coisa” não é tão diferente de nós. Ela aparece, transforma o ambiente ao seu redor, e, depois, desaparece, deixando apenas vestígios invisíveis. Assim também somos nós. Nascemos, alteramos o mundo de maneiras pequenas ou grandes, e, então, partimos, evaporando com o tempo. O que deixamos é transitório, e o que permanece são rastros que logo desaparecem. A transformação faz parte do ciclo natural das coisas, e “A Coisa” é um lembrete, ao mesmo tempo trágico e cômico, dessa dança eterna entre o sólido e o líquido, entre o estável e o efêmero.

Ao final, “A Coisa” nos oferece uma lição inesperada: viva à imaginação humana! Somos seres capazes de imaginar criaturas impossíveis e cenários improváveis, mas também de nos adaptar, de nos reinventar e de nos transportar para outros estados de existência. Assim como “A Coisa”, nascemos, moldamos o mundo ao nosso redor, e, um dia, evaporamos. Tudo é temporário, tudo se transforma. E, se a vida é líquida, que possamos aprender a fluir com leveza, aceitando as mudanças, navegando por esse mar de incertezas com criatividade e coragem. Que a jornada seja sempre uma dança entre os muitos estados de ser.

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Walter Naime, arquiteto-urbanista, empresário.

 

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