Gregório José
A situação dos autônomos nos aplicativos de transporte e entrega está no cerne de um debate que se avizinha nos gabinetes do Supremo Tribunal Federal (STF). Na outra ponta dessa discussão, há a vida real dos milhares de motoristas e entregadores que se equilibram numa corda bamba entre direitos e liberdades. Enquanto as empresas que coordenam esses serviços, como Uber, 99 e iFood, alegam ser meras plataformas digitais que facilitam a conexão entre consumidores e prestadores de serviço, os trabalhadores enfrentam condições rígidas e, muitas vezes, abusivas: cotas mínimas de corrida, horários de pico e, em alguns casos, exclusividade. E ainda assim, as plataformas rejeitam o rótulo de empregadoras.
Esse dilema, que aparentemente discute se o motorista é livre para escolher quando e onde vai dirigir, na prática, exige dele a dedicação integral e as metas impostas pela plataforma, como um verdadeiro patrão invisível. E quando o STF se prepara para decidir sobre o reconhecimento do vínculo empregatício, o assunto ganha uma complexidade de peso, com impacto sobre o princípio da livre iniciativa e o valor social do trabalho — direitos que, se mal equilibrados, podem virar uma faca de dois gumes.
A Procuradoria-Geral da República (PGR) acenou favoravelmente à declaração de repercussão geral, o que implica dizer que qualquer decisão tomada nesse caso abrirá precedentes para todos os demais casos semelhantes. Entre 2019 e 2023, mais de 780 mil processos chegaram à Justiça do Trabalho buscando exatamente o reconhecimento deste vínculo com as plataformas de aplicativo. É um número avassalador e, ao mesmo tempo, um sinal claro de que as fronteiras entre autonomia e subordinação precisam ser revistas com urgência.
Os municípios, por outro lado, são responsáveis pela regulamentação desses serviços desde a Lei 13.640/2018. Essa legislação garantiu certa segurança na atuação, mas de forma alguma protegeu os trabalhadores das oscilações do mercado. E, em um cenário onde ser motorista de aplicativo ou entregador virou a única opção de renda para uma parcela expressiva da população, essa fragilidade acende mais do que uma luz amarela.
Vale a pena? Essa é a pergunta que muitos autônomos vêm fazendo ao se depararem com custos que incluem a manutenção de veículos, certidões, seguros, além do desgaste físico e psicológico. Para o trabalhador, o transporte via aplicativo é o ganha-pão, mas para as empresas, é apenas o modelo de negócios — e um modelo que hoje pode até faturar alto, mas que depende da flexibilização extrema de quem está ao volante.
Ao STF caberá a palavra final. Em jogo está muito mais do que o trabalho ou o direito à livre iniciativa. Está o reconhecimento do trabalhador que, sob a miragem de autonomia, permanece submetido ao pulso firme dos algoritmos. É uma realidade onde o risco é todo do motorista e o lucro, todo da empresa. E, se o STF não encarar essa situação com um olhar firme, o mercado de trabalho como conhecemos se transformará em algo mais sombrio, onde o trabalhador será, em última análise, um autônomo subordinado, mas sem os direitos do emprego formal.
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Gregório José, jornalista, radialista, filósofo