Descoberta foi feita a partir de sequenciamento de RNA de células-tronco na região bucal
Um relatório da Organização das Nações Unidas (ONU) revela que quase metade da população mundial, cerca de 45%, é afetada por doenças bucais. Entre essas condições, as doenças periodontais revelam-se particularmente graves, podendo levar à inflamação das gengivas e, em casos avançados, à periodontite. Essa infecção chega a destruir o osso alveolar, ocasionando sérios transtornos, como a perda dos dentes.
Embora existam técnicas regenerativas para tentar frear e reverter esses danos, elas possuem um efeito frequentemente limitado e nem sempre eficaz na clínica periodontal. Isso se deve, em parte, ao desconhecimento sobre os processos celulares que podem contribuir para a regeneração dos tecidos ósseos responsáveis por sustentar os dentes.
Ciente da necessidade de mais pesquisas nessa área, Catharina Marques Sacramento decidiu investigar o sequenciamento de RNA de células-tronco nos tecidos dentários durante seu doutorado, realizado na Faculdade de Odontologia de Piracicaba (FOP) da Unicamp. Sacramento descobriu que o hormônio colecistocinina (CCK) desempenha um papel crucial na mineralização dos tecidos, um processo essencial para a formação óssea que sustenta os dentes.
Seu estudo foi reconhecido com o Prêmio Hatton na categoria Pesquisa Inovação durante o congresso de 2023 da Associação Internacional para a Pesquisa Dental (IADR, na sigla em inglês). O prêmio destacou a importância das descobertas feitas durante o doutorado, realizado sob a orientação da professora Karina Gonzales Silvério Ruiz, do Departamento de Prótese e Periodontia da FOP.
A pesquisa de Sacramento deu continuidade a investigações anteriores realizadas por Ruiz com o objetivo de entender o que fazia uma célula-tronco ter potencial para formar tecido mineralizado. A docente, junto com outra ex-orientadora, já havia realizado o sequenciamento de RNA em pesquisas anteriores, mas apenas uma parte desses dados tinha sido explorada.
“A pesquisa anterior gerou um grande volume de dados, e foi a partir desses dados que Catharina começou a trabalhar, oferecendo uma nova perspectiva”, explica Ruiz. Durante sua análise sobre o sequenciamento genético, Sacramento identificou uma via de sinalização celular incomum na região bucal, que nunca havia sido associada à formação de tecido na cavidade oral. Até então, essa via estava relacionada a problemas gastrointestinais, de acordo com os estudos publicados.
As vias de sinalização celular formam “rotas de comunicação” dentro das células, permitindo indicar quais hormônios ou outras substâncias são necessários em resposta a estímulos. “Normalmente, ao analisar as células ósseas, consideramos as vias de sinalização celular clássicas, já amplamente estudadas. Decidi investigar algo novo: a via do hormônio colecistocinina, que os resultados do sequenciamento mostraram estar presente nas células ósseas do ligamento periodontal, apesar de a literatura associá-lo principalmente ao sistema gastrointestinal. Isso despertou minha curiosidade. Perguntava-me o que ela estava fazendo ali”, explica Sacramento.
Além desse ponto, conta a orientanda, as características da via do CCK revelaram-se semelhantes a outra via conhecida por sua relação com a produção óssea. “Como a via do CCK se assemelhava à via de cálcio, revisei a literatura e levantei a hipótese de o CCK ser importante para a formação óssea”, acrescenta.
Com base nessa hipótese, Sacramento realizou experimentos-piloto e demonstrou que o hormônio CCK é importante para a produção de tecido ósseo na região bucal. Contudo, a fim de validar a descoberta, fizeram-se necessários estudos adicionais.
A pesquisadora, então, testou, por meio de experimentos in vitro, drogas destinadas ao sistema gastrointestinal que estimulam ou bloqueiam a produção do CCK em células da cavidade bucal e constatou que o hormônio estava diretamente relacionado à formação de tecidos ósseos.
“Esse foi um achado muito interessante, pois ninguém havia observado isso antes. Eu e a professora Karina valorizamos a inovação e a possibilidade de descobrir algo que possa ter um impacto significativo. A ideia de que algo relacionado ao intestino possa ser aplicável na boca foi fenomenal. Quando começamos a ver os resultados, percebemos o grande potencial para aplicações clínicas”, afirma Sacramento.
Embora ainda haja um longo caminho pela frente, tanto a orientanda quanto sua orientadora acreditam no potencial da aplicação clínica, não somente na odontologia, mas também na medicina em geral. “Estamos confirmando nossos resultados de várias maneiras, não apenas em células do ligamento periodontal. Também observamos que o CCK pode ser importante na mineralização óssea em outras partes do corpo”, explica. Ambas não descartam a possibilidade de os resultados encontrados poderem estimular médicos a voltarem os olhos para esse hormônio.
Atualmente, Sacramento está no Programa de Pesquisador de Pós-Doutorado na FOP, onde ministra aulas para a graduação e a pós-graduação. E prepara-se para prosseguir com sua pesquisa no pós-doutorado, que focará o desenvolvimento de um biomaterial capaz de estimular a produção do hormônio na região bucal, primeiro com testes in vitro, depois em animais e, de acordo com os resultados, em seres humanos.
O trabalho já gerou novas vertentes de pesquisa para orientandos de Ruiz, desde a iniciação científica até o doutorado, e segue sendo motivo de estímulo e inspiração para outros estudantes. Uma das colaborações previstas envolve uma parceria com um laboratório de desenvolvimento de biomateriais na Universidade de Oregon (Estados Unidos), que está submetendo um projeto à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).