Cecílio Elias Netto
Suave, o som de celular. O homem acorda ainda sonolento. Xinga. Desliga o celular. Sai da cama, espreguiça-se, vai ao banheiro para a higiene pessoal. Abre o chuveiro. Cadê o celular? Espia pela porta, confirma-o: o celular está na cama. Deixa a água escorrer pelo corpo. Fecha a torneira. Enrola-se na toalha. Mas… Cadê, mesmo, o celular? Volta ao quarto: o celular ainda está na cama. Tranquiliza-se.
Veste-se rápido. Não pode atrasar. Cadê o celular? Pega-o. Bebe depressa um pouco do café da noite anterior. Olha o celular. Nenhum recado. Preocupa-se. Estaria esquecido pelos conhecidos? Dá de ombros. Acessa o noticiário, “ter um celular é ter o mundo nas mãos.” O noticiário é o de sempre: guerra, corrupção, fome. Guarda o celular. Entra no carro, liga o motor. Será que esqueceu o celular? Lembra-se: está no bolso. Tira-o do bolso. Deixa-o à vista, no dispositivo especial para celular.
Estaciona o veículo, sai. Pega o celular. Caminha, olhando o celular. Quase esbarra em alguém, mal percebe. Põe o celular no bolso, apalpa o celular. Entra no elevador, tenta tirar o celular do bolso. Não consegue, apertado entre outras pessoas. Sai do elevador, pega o celular. As pessoas quase se atropelam, cabeças baixas. Cada um com seu celular.
Entra no escritório. Com o celular na mão. Cordial, deseja bons-dias aos colegas. Um que outro ergue rapidamente os olhos, respondendo com mudo aceno de cabeça. Também cabisbaixos, cada qual com seu celular na mesa. Ao lado do computador. O silêncio é quase absoluto. E todos estão vivos, sabem falar, mover os olhos. Estes, porém, apenas se dirigem a seus celulares.
Senta-se à sua mesa, coloca o celular entre os papéis, fácil de observar. À sua frente, o colega faz-lhe um sinal. Sugere-lhe veja a mensagem enviada de seu celular para o celular dele. Olha. Lá está, no celular, vindo de outro celular: “Bom dia.” Dedilha em resposta: “Bom dia. Mais tarde, eu lhe conto as novidades.” O outro responde que, sim, aguarda a novidade em seu celular.
Recebe um sinal no celular. Vem do celular da faxineira: “Posso limpar a sua mesa?” E ele, pelo celular: “Quando puder, eu aviso.” A faxineira responde pelo celular: “Então, espero, obrigado.” Ele suspira fundo, volta a olhar o celular. Nenhum sinal de vida, ninguém mantendo contato. Estaria sendo esquecido pela namorada, pelos amigos? Vê a “moça do café” oferecendo café ao pessoal. Pega o celular, manda um recado: “Você pode me servir um cafezinho?” A moça apoia a bandeja num das mesas, tira o celular do bolso, olha para o homem, sorri para ele, manda o recado, pelo celular: “Já, já, passo aí.” Pelo celular, ele responde: “Obrigadinho”.
Vontade de fazer xixi. Levanta-se, pega o celular. Nos próximos passos, até o sanitário – “toalete”, como dizem – consulta o celular. Sem novidade. Chega ao sanitário, abre a braguilha, muda o celular de mão, começa a fazer xixi, olhando, ainda, o celular. Termina sua atividade, fecha a braguilha, deposita o celular na pia, lava as mãos. Olhando o celular. Enxuga as mãos, apanha o celular. Sai, procurando algo no celular.
Início de noite. Encontra-se com a namorada. Pelo celular, diz-lhe carinhosamente: “Oi.” Também carinhosamente, pelo celular, ela responde: “Oi.” Ele dedilha pelo celular: “Vamos prum motel, querida?” E, ela, pelo celular: “Cê que sabe, amor meu.” No quarto, amam-se, cada um com o celular junto a seu travesseiro. Separam-se, respiram fundo. Ele pega o celular, pergunta: “Tudo bem, querida?” Ela, pelo celular: “Mais ou menos…”
(Terminou o espaço do narrador.)
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Cecílio Elias Netto, escritor, jornalista, decano da imprensa piracicabana