Santuários e romarias, numa perspectiva antropológica

Armando Alexandre dos Santos

A Igreja Católica valoriza muito o conceito de santuário. Santuários são determinados locais que os fiéis procuram com especial devoção, por encontrarem naqueles locais particular facilidade para o recebimento de graças e dons divinos. Na estrutura canônico-litúrgica da Igreja, algumas igrejas ou basílicas recebem oficialmente a designação de santuários. Mas mesmo extraoficialmente, por todas as partes existem locais de romaria.

Ao que parece, o costume de visitar santuários foi herdado dos antigos judeus, que iam uma vez por ano ao Templo de Jerusalém, por ocasião da Páscoa. Essa ideia de tornar Deus propício oferecendo-Lhe o sacrifício e os incômodos de uma longa caminhada, para ir cultuá-Lo num santuário distante, passou para a Igreja Católica e teve prática muito intensa na Idade Média.

Do ponto de vista antropológico, note-se que a existência desses santuários e a frequência deles por parte dos fiéis corresponde a uma necessidade psicológica dos fiéis, que sabem que Deus é puro espírito, que Ele está presente em todas as partes, que Ele pode ser invocado em todos os lugares, mas sentem que Ele se mostra particularmente propenso a atender os pedidos que Lhe são feitos a partir de determinados locais geograficamente situados. Eu quase diria, exprimindo-me de modo muito impróprio do ponto de vista teológico, que sentia-se como que uma presença física, uma como que “materialização” de Deus em determinados lugares.

O esforço e o sacrifício para atingir esses lugares (sobretudo numa época em que as comunicações eram difíceis, não havia conforto de espécie alguma, nem hotéis, nem pousadas, nem hospitais, as rotas estavam, muitas vezes, infestadas de bandidos) também exerciam, sobre os peregrinos, um efeito benéfico, sentindo suas consciências aliviadas e sentindo que predispunham Deus a ser benigno em relação a eles.

Acrescente-se a isso o elemento curiosidade e o desejo de ver e conhecer coisas novas. Para os antigos de um modo geral, e mesmo para os integrantes da nobreza, viajar era algo pouco frequente. A imensa maioria das pessoas não saía, durante toda a sua vida, do seu local de nascimento. Compreende-se, ainda do ponto de vista antropológico, que a curiosidade também fosse um elemento favorecedor das peregrinações. Fazer uma peregrinação podia ser, para muitas pessoas, o grande feito da vida.

No Brasil, o costume tradicional das romarias e peregrinações remonta aos primórdios da nossa história. No início do século XVIII, Frei Agostinho de Santa Maria publicou em Portugal uma obra famosa, em 10 volumes, chamada “Santuário Mariano”, na qual elenca e historia as devoções marianas em santuários do então Reino de Portugal. É uma obra raríssima e de grande valor. Pude consultá-la na Seção de Livros Raros da Biblioteca Municipal Mário de Andrade, de São Paulo. Um volume inteiro é dedicado a santuários marianos do Brasil.

Ainda recentemente, foi reeditado esse volume no Rio de Janeiro, numa edição maravilhosa, ilustrada com fotografias de algumas dezenas dessas imagens marianas brasileiras que ainda se conservam em nossos dias. Muitas, infelizmente, se perderam.

Os mais célebres santuários focos de romaria, no Brasil atual, são Aparecida, Bom Jesus da Lapa e o da Virgem de Nazaré, em Belém.

Aparecida é, atualmente, o segundo santuário mariano do mundo, em número de peregrinos. Passou já à frente de Lourdes e de Fátima. Só perde, em número de romeiros, para o da Virgem de Guadalupe, no México. Mas este último está situado dentro da Cidade do México, sendo, pois, santuário urbano. Para um santuário distante de grandes cidades, como é o caso de Aparecida, a frequência dos fiéis é espantosamente elevada. Vêm eles dos mais diversos pontos de São Paulo, de Minas Gerais e de vários estados do Brasil.

O santuário de Bom Jesus da Lapa fica na cidade de mesmo nome, às margens do rio São Francisco. Lá estive uma vez, e fiquei realmente impressionado. O santuário é situado dentro de uma gruta, a qual tem, por dentro forma de uma igreja normal, com nave central, capela lateral, do outro lado, uma capela para o batistério, alguns orifícios filtrando a luz à maneira de janelas. É algo que parece surrealista.

Ao santuário de Nazaré, em Belém, multidões e multidões ali acorrem na Festa do Círio, mas, curiosamente, sua romaria é feita em barcos, pois seria impossível fazê-la por terra. Nos dias que antecedem a festa, milhares e milhares de barcos de tamanhos muito diversos, vão descendo lentamente o Amazonas, para marcarem presença na festividade religiosa.

Esses são os maiores focos de peregrinação. Mas há inúmeros outros. Criou-se, há pouco tempo, a categoria de Santuários Diocesanos, ou seja, santuários menores, restritos a determinadas dioceses. Existem também santuários regionais, de âmbito maior. E Santuários Nacionais, como por exemplo o de Aparecida.

Somente no Estado de São Paulo, que me recorde, podem ser lembrados, como santuários regionais, o do Bom Jesus de Pirapora, o do Bom Jesus de Iguape, o do Bom Jesus de Tremembé, o de Nossa Senhora de Montserrat, em Santos (este último era muito frequentado, ignoro por quê, por famílias de origem portuguesa; lembro de uma tia minha me ter levado lá, quando eu era menino, para pagar uma promessa; é um local lindíssimo, no alto de um morro, com vista para as cidades de Santos e Guarujá). Há ainda um Santuário marial muito famoso, de âmbito arquidiocesano, em São Paulo, no Bairro da Penha.

Em Minas, na cidade de Curvelo, há o famoso santuário de São Geraldo, frequentado por peregrinos do estado inteiro. Lá estive de passagem, mas infelizmente encontrei-o fechado.

Em Porto Alegre, há o santuário de Nossa Senhora dos Navegantes, e numa cidade próxima, São Leopoldo, também o túmulo do Pe. João Baptista Reus, que morreu em odor de santidade, é visitado por romeiros que acorrem de locais distantes.

Se formos analisar, do ponto de vista antropológico e fazendo abstração do elemento fé, o que move tantos peregrinos no Brasil atual, eu diria que, fundamentalmente, são os mesmos motivos que motivavam os peregrinos medievais: a noção da como que “presença física” do sobrenatural em certos lugares, a sensação reconfortante do esforço e do sacrifício feito com o fim de obter tranquilidade e paz de consciência, e, em grau menor, a curiosidade.

 

 

 

 

______

Armando Alexandre dos Santos, Licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro da Academia Portuguesa da História e dos Institutos Históricos e Geográficos do Brasil, de São Paulo e de Piracicaba.

 

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Rolar para cima