Um épico filmado no Ceará

Armando Alexandre dos Santos

 

Tenho em minha biblioteca duas grandes prateleiras com farta literatura acerca do conflito de Canudos. Posso dizer que sou um canudólogo amador e canudófilo apaixonado. Assisti novamente, há pouco tempo, ao filme “Guerra de Canudos”, uma produção de Mariza Leão, com a direção de Sérgio Rezende e a participação de Cláudia Abreu, Paulo Betti, Marieta Severo e José Wilker.

Trata-se de um épico, filmado no Ceará, em local que lembra um pouco a região baiana de Canudos, onde realmente ocorreu a guerra. Conheço bem a região de Canudos, pois lá estive em duas ocasiões, e realmente posso atestar que a região do filme se lhe assemelhava.

Do ponto de vista dos recursos técnicos, é uma produção muito acima da média do cinema brasileiro. Mais de cinco mil figurantes, o que, para um filme brasileiro, é muito. Naturalmente, nem de longe pode comparar-se a similares produções norte-americanas, mas, sinceramente, desse ponto de vista “Guerra de Canudos” não desempenha papel feio. Os artistas são, de modo geral, bons, merecendo destaque, a meu ver, Marieta Severo, que representou uma quase perfeita “jagunça”. Só não convencia pelas sobrancelhas bem delineadas, que denunciavam a mulher moderna…

O pior ator, a meu ver, foi José Wilker, que contrariando a verdade histórica figurou um Antônio Conselheiro louco e alumbrado. Hoje, com os manuscritos do Conselheiro publicados em fac-símile por Ataliba Nogueira, sabe-se que o Conselheiro, na realidade, era um homem cultivado, de muita leitura, com redação elegante, com conhecimentos de francês e de latim, arquiteto prático com muitas obras realizadas, rábula de sucesso. Sua figura caricatural, debuxada por Euclides da Cunha e representada de modo excessivamente forçado e até grotesco por Wilker, não corresponde em nada à verdade histórica.

Do ponto de vista dos trajes, do armamento, confesso que não encontrei anacronismos, embora tenha procurado com muito cuidado. Já na linguagem dos figurantes, anacronismos havia, e não poucos.

Na minha primeira viagem a Canudos, em janeiro/fevereiro de 2001, visitei o museu histórico da Nova Canudos, cidade erigida em 1969, quando a primitiva Canudos, cujas ruínas tive ocasião de explorar, ficou submersa pelas águas do rio Vasa-Barris, represadas no gigantesco Açude de Cocorobó. No museu, assisti a um longo documentário que, infelizmente, não mais consegui encontrar, com os bastidores da filmagem de Guerra de Canudos. Esse documentário, a meu ver, deveria ser incluído no DVD do filme, pois contém informações da maior utilidade para o estudioso.

Cheguei a conversar longamente, num Congresso de História da Bahia, realizado em Salvador, com o famoso Prof. José Calazans, o maior e mais profundo conhecedor do assunto Canudos, o primeiro pesquisador que foi, realmente, entrevistar remanescentes da luta e interpretou a realidade canudense como ela era, não a pintando com as cores das sucessivas ideologias da moda. Não caiu no erro de Euclides, que analisou a guerra numa ótica positivista e de fanatismo republicano, como tampouco caiu no erro de intérpretes modernos, que querem atribuir ao Arraial de Canudos uma ideologia de esquerda, gênero MST… Nada disso! Canudos deve ser entendida, acima de tudo, como um movimento cultural único, sem paralelos conhecidos para servirem de pontos de referência. A ameaça monarquista de Canudos, pretensamente armado e municiado pela Princesa Isabel e pelo Conde d’Eu (sic!) também não tinha a menor realidade. Foi um espantalho erguido pelo governo Prudente de Moraes para assegurar apoio da opinião pública. Tão orquestrada e unânime foi a grita da imprensa contra Canudos, que até o monarquista Conde Afonso Celso, filho do Visconde de Ouro Preto (último Presidente do Conselho de Ministros do Império) afirmou que, se em vez de república o Brasil fosse monarquia, seria preciso extirpar o câncer de Canudos. “Estivéssemos nós no poder, disse ele, procederíamos exatamente do mesmo modo como agiu o governo republicano”.

Na minha segunda viagem a Canudos, em novembro/dezembro de 2001, fui numa equipe da Universidade do Estado da Bahia, dirigida pelo saudoso amigo Edivaldo Boaventura, fundador dessa universidade e criador do Parque Nacional de Canudos. Da equipe fazia parte o historiador Luiz Paulo de Almeida Neiva, que juntamente com o arqueólogo Paulo Zarattini estava fazendo escavações arqueológicas. A meta de Neiva era encontrar a ossada de Antônio Conselheiro e, depois de autenticada pelo exame de DNA (comparado com o de parentes seus que, segundo Neiva me informou, já tinham sido localizados em Quixeramobim, no Ceará), colocá-la numa herma em sua homenagem, em Canudos. Seria uma reparação condigna a sua figura ilustre e injustiçada.

Infelizmente, isso não chegou a ser feito. Depois de mais de 5 anos de seca, no início de 2002 choveu torrencialmente na região durante um mês inteiro. O rio Vasa-Barris, que no tempo da Guerra tinha 100m de largura, e que eu atravessei várias vezes, na minha segunda viagem, a pés enxutos, voltou a encher. A represa de Cocorobó, que a prolongada seca reduzira a algumas poças de água barrenta, voltou rapidamente a suas dimensões normais. E as ruínas de Canudos voltaram a ficar 23 metros abaixo do nível da água.

 

 

 

 

 

 

Licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro da Academia

Portuguesa da História e dos Institutos Históricos e Geográficos do Brasil, de São Paulo e de Piracicaba.

 

 

 

Frase a destacar: Marieta Severo representou uma quase perfeita “jagunça”. Só não convencia pelas sobrancelhas bem delineadas, que denunciavam a mulher moderna…

 

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Rolar para cima