Um tiro em curva

Jorge Branco

A bala que acertou de raspão a orelha, pouco útil, de Donald Trump se alojou no coração da candidatura de Joe Biden. Depois de uma forte pressão feita através das redes digitais e grandes veículos de imprensa, em especial os identificados com o Partido Democrata, Biden abdicou da condição de candidato à presidência dos EUA e, em ato contínuo, indicou à convenção do partido sua vice-presidenta Kamala Harris como candidata em seu lugar.

Essa mesma imprensa, indica que ela está disponível para assumir a candidatura. Kamala, no fundamental, cumpriu o roteiro tradicional do Partido Democrata no governo. Compôs um governo que, se aberto discricionariamente às causas de direitos sociais, é conservador na defesa do rentismo e da política imperialista e militarista nas relações internacionais. Exatamente por isso deve obter a indicação para concorrer, já antes mesmo da Convenção Democrata.

Kamala se tornou uma referência, na divisão de trabalho com Biden, para o escoamento de temas relativos à política para as mulheres. Notadamente, após a Suprema Corte revogar o direito constitucional das mulheres ao aborto em 2022, Kamala se tornou a principal voz do governo Biden em direitos reprodutivos. Há uma certa expectativa, entre os estrategistas dos Democratas que ela possa conquistar o voto de eleitores negros, jovens e aqueles que não aprovam a forma como Biden está lidando com a guerra entre Israel e o Hamas.

Não será simples. O fato de ser mulher e negra, filha de imigrantes, cria-lhe uma imagem eleitoral que pode agradar a muitos eleitores progressistas que definiram a eleição anterior contra Trump e que estavam se desgarrando da candidatura de Biden. Contudo, efetivamente, Kamala pouco fez contra a tradicional política intervencionista dos Democratas quando no governo. Ela própria é engajada na sustentação do apoio do Governo Biden ao genocídio imposto pelo Governo de Netanyahu, primeiro-ministro de Israel, contra o povo Palestino. Assim como o histórico dela como promotora, que foi marcado por uma atuação bastante tradicional em relação às populações mais pobres, de negros e de imigrantes. O que lhe rendeu muitas críticas de organizações de igualdade étnica e de direitos humanos.

O tiro na orelha já conferiu a Trump a primeira vitória política sobre os Democratas. A retirada de Biden é a primeira derrota que Trump impõe. A substituição de Biden por Kamala é, simultaneamente, um reconhecimento da vantagem de Trump nas eleições e um esforço de virar a disputa.

O certo é que, assim como em 2020, pouco se poderia esperar de Biden, pouco se pode esperar de um governo liderado pela democrata Kamala Harris. Tal e qual Biden, certamente fará um governo conservador e hegemonista, que pouco ou nada possa contribuir para um maior equilíbrio das relações internacionais e no combate à pobreza e à desigualdade no desenvolvimento no mundo. Continuará a ser um governo ‘de americanos, para americanos”. A diferença, para Trump, é o maior número de grupos sociais incluídos nesse conjunto e uma maior comunicabilidade com sua base, à exemplo de Obama.

Contudo, isso não diminui a importância da derrota de Trump, ou seja, da vitória eleitoral de Kamala. Lembremos que a política de Biden no episódio da tentativa golpista no Brasil foi decisiva para a manutenção do resultado das urnas em 2022. A intentona bolsonarista, também, faliu em função da falta de apoio dos EUA.

Um novo governo de Trump significará uma remobilização da extrema direita mundial. O que será péssimo para os futuros esforços de defesa da democracia e de reconstrução dos direitos fundamentais. O que a extrema direita, associada à estratégia da austeridade neoliberal, tem combatido. As eleições estadunidenses são decisivas nesta luta global contra o reacionarismo e a extrema direita. Nada pode ser pior que a vitória de Trump e de seus White Power.

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Jorge Branco, sociólogo, mestre em Ciência Política

 

 

 

 

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