Armando Alexandre dos Santos
Na pesquisa historiográfica, podem ser aplicados dois métodos, o quantitativo e o qualitativo. Cada um deles tem suas aplicações, suas especificidades, suas vantagens e também suas limitações.
À primeira vista, dever-se-ia preferir sempre o método quantitativo, porque ele parece mais “científico” e menos sujeito a incertezas, uma vez que se baseia em números exatos e não está sujeito às variações emocionais sempre possíveis no espírito do historiador que formula seus juízos sem base em provas materiais e palpáveis.
Por trás dessa posição crítica do método qualificativo está uma mentalidade herdada do velho positivismo comtiano, que desejava fixar um critério de pesquisa científica único, de caráter preferencialmente quantitativo, baseado em medições experimentais e numéricas para todas as ciências, fossem de que áreas fossem. Esse critério, que nas ciências exatas – e mesmo em algumas áreas específicas das ciências humanas (por exemplo, Estatística, Economia, História Econômica, Sociologia) e das ciências médicas (ex. gr., pesquisas de laboratório) – pode ser de grande valia, no entanto é seriamente questionável, para dizer pouco, que se possa aplicar convenientemente, como regra geral, à totalidade das ciências humanas. De fato, as ciências humanas, como o Direito, a História, a Psicologia, a Economia, têm sua especificidade própria, e devem tomar em consideração uma série de fatores que não são “quantificáveis”, não são exprimíveis em termos numéricos. Nessas ciências, intervém o fator decorrente da liberdade humana, que propende por vezes para o inesperado, para o que foge às regras. É algo meio imprevisível, por mais que se sistematizem as bases de cálculos e se calculem matematicamente as “margens de erro”.
Na pesquisa qualitativa, intervêm também elementos que um pesquisador quantitativo talvez desprezasse: o “feeling”, a intuição, o “faro”, o chamado “sexto sentido”. Qual pesquisador nunca sentiu, em suas pesquisas, esses fatores atuando? O espírito humano é ágil e fecundo em estabelecer relações de analogia, relações que o rigor da pesquisa qualitativa pode considerar ilógicas, mas que o bom senso – esse atributo tão humano e tão importante na nossa vida – considera deverem ser tomadas em consideração.
Vou dar um exemplo real, de uma área que é mais de Ciências Biológicas que de Ciências Humanas, mas que me permite exprimir bem meu pensamento.
Contou-me, há muitos anos, uma velha médica judia, extremamente lúcida e competente, um episódio que presenciou pessoalmente, quando estudava Medicina. Ela fazia parte de uma equipe de residentes num hospital, quando foi chamado, para atender a um caso gravíssimo, um dos maiores clínicos gerais de São Paulo, um médico idoso, de origem árabe, que era, por coincidência, professor dela na faculdade.
O caso era desesperador. Era um menino de 9 ou 10 anos, que estava morrendo, atingido por uma doença misteriosa que nenhum exame conseguia detectar. Os resultados que esses exames apresentavam não correspondiam a nenhuma doença conhecida. Todos os sinais e sintomas se contradiziam, não havendo lógica alguma no quadro do paciente. Todas as hipóteses levantadas pelos médicos eram logo abandonadas, porque outros sinais e sintomas, ou a evidência de outros exames, as contradiziam frontalmente. Enquanto debatiam os esculápios, o menino cada vez mais se aproximava da morte. Já duas ou três juntas médicas se haviam reunido, sem nenhum resultado. Em desespero de causa, chamaram, então, o grande professor. Ele chegou, examinou atentamente o doente, leu com atenção os relatórios todos e, sem hesitar, deu secamente uma ordem: – Ministrem imediatamente ao paciente uma dose do remédio X, na veia, já, sem um minuto de demora.
Era um remédio bem conhecido, específico para uma doença Y, cujos sintomas o menino não apresentava. Os médicos presentes acharam que o professor havia se enganado e imediatamente se puseram a contra-argumentar: – Mas, professor, o paciente obviamente não pode ter a doença Y, porque o quadro de sintomas é bem diverso…
O professor, com firmeza, gritou: – Façam imediatamente o que mandei e não discutam!
Os outros obedeceram a contragosto. Minutos depois, para surpresa geral, o menino abriu os olhos. Pouco depois, os sinais vitais foram se normalizando e poucas horas depois estava inteiramente fora de perigo.
Esse fato, que se passou nos anos 50 do século passado, ficou célebre nos anais da medicina paulista. Todos foram cumprimentar o eminente professor, e lhe perguntaram como ele tinha podido acertar com tamanha precisão um diagnóstico tão difícil e um remédio tão inesperado. A resposta dele foi o que mais surpresa causou aos outros médicos:
– Eu estava tão sem rumo quanto vocês. Nada de lógico eu poderia propor, que vocês já não tivessem antes pensado. Mas eu via o menino morrendo e só algo ilógico poderia salvá-lo. Em desespero de causa, passou pela minha memória a lembrança de um homem que vi morrer, muitos anos atrás, da doença Y, que naquela época não tinha tratamento. Recordei que, na agonia, ele tinha os braços enrijecidos e os polegares dobrados sobre a palma da mão, exatamente como estavam os braços e os polegares do menino que estava morrendo diante de nós. Nenhum outro sintoma coincidia, mas, como tentativa desesperada, mandei dar o remédio específico para a doença Y. Vocês me obedeceram e nós todos, juntos, salvamos o menino. Não foi nada lógico, não foi fruto de nenhuma genialidade de diagnóstico, foi só uma coincidência feliz…
Esse caso é real. Embora pareça inteiramente deslocado no tema enunciado no início deste artigo, ele me parece bem exemplificativo do problema que estamos tratando.
Quantitativamente, da análise numérica e experimental dos dados disponíveis, o menino teria morrido. Qualitativamente, porém, intervieram fatores como o estabelecimento de analogias inesperadas, “faros”, olho clínico, de algo que parece ilógico, mas que, na realidade, corresponde a uma lógica muito profunda e verdadeira, se bem que nada cartesiana. E o menino foi salvo.
Concluo dizendo que os historiadores não devem desprezar os números e as pesquisas quantitativas. Mas devem ter o espírito muito mais aberto para as qualitativas, pois é nelas que encontrarão as melhores soluções para os grandes problemas da sua área.
Note-se que o método qualitativo assim entendido não é emoção pura, já que corresponde a uma lógica profundamente racional, se bem que muitas vezes impalpável e inexprimível em termos correntes. É uma lógica nada cartesiana. E tampouco o método qualitativo é razão pura, já que o bom senso indica que há coisas reais não quantificáveis, sobretudo nas ciências humanas. Há que saber utilizar ambos os métodos, conforme o caso.
Licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro da Academia
Portuguesa da História e dos Institutos Históricos e Geográficos do Brasil, de São Paulo e de Piracicaba.
Frase a destacar: Na pesquisa qualitativa, intervêm elementos que um pesquisador quantitativo talvez desprezasse: o “feeling”, a intuição, o “faro”, o chamado “sexto sentido”.