Armando Alexandre dos Santos
No último dia 25 de março comemorou-se o bicentenário da Constituição Imperial de 1824. Elaborada por uma comissão de juristas sob a inspiração direta de D. Pedro I, outorgada pelo imperador e aprovada pelas câmaras municipais de todo o Império, vigoraria com apenas uma pequena emenda até 1889, quando o golpe republicano deu início à interminável série de repúblicas que se vêm sucedendo há 135 anos. Foi a mais durável e, segundo boa parte dos constitucionalistas brasileiros, a melhor das Constituições que já teve o nosso país.
Tive ocasião de participar de duas obras coletivas acerca do seu bicentenário. No mês passado, foi lançada em Brasília, nas dependências do STF, a primeira delas, intitulada “No bicentenário da Constituição de 1824: estudos sobe a formação constitucional do Brasil império”, com organização de Ibsen Noronha. Lançada simultaneamente em Portugal e no Brasil, respectivamente pelas editoras Caminhos Romanos, do Porto, e Resistência Cultural, de São Luís do Maranhão, deveu-se a iniciativa da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, que tem uma cadeira de Direito Luso-Brasileiro, regida pelo coordenador da obra, Prof. Ibsen Noronha, brasileiro que fez mestrado e se doutorou pela Universidade de Coimbra. Por especial convite da Universidade de Coimbra, prefaciou a obra o Príncipe D. Bertrand de Orleans e Bragança, Chefe da Casa Imperial do Brasil e descendente direto de D. Pedro I. Colaboraram na obra 20 professores portugueses e brasileiros, entre os quais dois ministros do STF. Minha participação foi um estudo sobre os dispositivos da Constituição de 1824 acerca da dinastia e dos dinastas brasileiros.
Em maio próximo será lançado em São Paulo, pelo Clube do Livro Ludovico, outra obra que também reunirá estudos de especialistas sobre essa constituição. O coordenador é o bem conhecido Prof. Rafael Nogueira, atual presidente da Fundação Catarinense da Cultura. Foi ele que me convidou a colaborar nessa iniciativa, o que prontamente aceitei, mas ainda não tenho informações mais precisas acerca dos demais coautores.
Discutem ainda hoje, historiadores e estudiosos do Direito, sobre o verdadeiro caráter da primeira Constituição brasileira, datada de 25 de março de 1824. Alguns a veem como “reacionária”, outros como “progressista”. Que pensar disso?
As designações “reacionária” e “progressista” contêm sensível carga ideológica e pressupõem uma visão linear e predeterminada da História. Ambas são insistentemente usadas pelas correntes de esquerda, a primeira para estigmatizar os que pela ação ou por inércia põem entraves aos avanços revolucionários, a segunda com claro intuito propagandístico de identificar os seus objetivos com a ideia de um progresso benéfico para a Humanidade. O Manifesto Comunista de 1848 aponta como reacionárias as classes médias que não se inserem no programa de total destruição da burguesia pelo proletariado revolucionário. Suas palavras textuais: “De todas as classes que hoje em dia se opõem à burguesia, só o proletariado é uma classe verdadeiramente revolucionária. As outras classes degeneram e perecem com o desenvolvimento da grande indústria; o proletariado, pelo contrário, é seu produto mais autêntico. As classes médias – pequenos comerciantes, pequenos fabricantes, artesãos, camponeses – combatem a burguesia porque esta compromete sua existência como camadas médias. Não são, pois, revolucionárias, mas conservadoras; mais ainda, são reacionárias, pois pretendem fazer girar para trás a roda da História.” (MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto Comunista. Tradução de Álvaro Pina. São Paulo: Boitempo Editorial, 2005, p. 49)
Note-se, nas frases finais do texto citado, o caráter acentuadamente determinista desse texto: existe uma “roda da História” que gira sempre para a frente e não pode girar para trás; pretender resistir a esse movimento inelutável é ser reacionário. Reacionário é quem pretende girar para trás a “roda da História”, progressista é quem deseja vê-la sempre rodar para a frente, ou seja, no sentido revolucionário.
Na verdade, a Constituição Imperial, para ser bem entendida, deve ser contextualizada, ou seja, inserida no processo histórico da Independência do Brasil e, mais amplamente, no quadro das imensas transformações ocorridas na Europa e no Mundo em decorrência da Revolução Francesa.
O 7 de Setembro de 1922 marcou, sem a menor dúvida, um virar de página, na trajetória da nação brasileira. Teoricamente, todo virar de página (seja na vida de um indivíduo, seja na vida de um povo) pode se dar de duas maneiras fundamentais: ou pela continuidade ou pela ruptura.
O processo de Independência do Brasil teve, é claro, elementos de ruptura em relação a Portugal, mas se deu sobretudo na linha da continuidade – continuidade na Fé, na língua, na forma de governo, na dinastia, na tradição unitarista da monarquia lusa. O primeiro Imperador do Brasil rompido com Portugal foi precisamente o herdeiro da coroa de Portugal. Até nesse ponto fundamental manteve-se a continuidade.
É em face dessa realidade concreta que tentaremos responder (não já, porque nosso espaço já acabou… mas na continuação deste artigo) se e em que sentido a Constituição de 1824 foi reacionária ou progressista.
Licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro da Academia
Portuguesa da História e dos Institutos Históricos e Geográficos do Brasil, de São Paulo e de Piracicaba.