Armando Alexandre dos Santos
Já é hora de concluir esta longa série de artigos sobre o importante livro “A África e os Africanos na formação do mundo atlântico”, de John Thornton. Resta apenas salientar seu inegável mérito.
Recordo sempre que o celebrado poeta paulista Paulo Bomfim, meu saudoso amigo, costumava dizer que houve três “ismos” que condicionaram, e de certa forma engessaram a cultura brasileira: o jesuitismo, o positivismo e o marxismo.
Já vão longe os tempos áureos dos dois primeiros desses “ismos”, mas sua influência deixou marcas que ainda podem ser notadas, em alguma medida, em nossos dias. No que diz respeito ao jesuitismo, a opinião de Bomfim é bastante discutível. Houve aspectos muito positivos na atuação da Companhia de Jesus no Brasil, a par de aspectos talvez menos louváveis. De qualquer forma, é inegável sua influência e sua importância em nosso país. Vale lembrar que até 1962 ainda estava em vigor, entre nós, a chamada “Reforma Capanema”, introduzida no início dos anos 40, que instituíra um ensino secundário de tipo clássico, inteiramente baseado no velho sistema de Humanidades, herdado, de maneira remota, do Trivium e do Quadrivium medievais, enriquecidos com matérias científicas e técnicas requeridas pelos tempos modernos. A Reforma Capanema foi obra, como é bem sabido, do ministro Gustavo Capanema (homem de imensa cultura clássica, das maiores do seu tempo) em colaboração com o cultíssimo jesuíta Pe. Leonel Franca, fundador da PUC do Rio de Janeiro e intelectual respeitado em todos os quadrantes culturais do Brasil, e com o também muito erudito jesuíta Pe. Arlindo Vieira. A Reforma Capanema, se bem que eivada, em suas origens, pelo “pecado original” irreparável de ser produto de um regime ditatorial, e se bem que a ela caibam críticas bastante pertinentes, ainda marcou, a meu ver, uma fase feliz do ensino brasileiro – pelo menos muito melhor do que as que vieram depois. Tínhamos, durante sua vigência, uma escola pública de alto nível. Se, em vez de destruí-la pelas bases, como fizeram as sucessivas LDBs que desde 1962 se promulgaram no Brasil, a rede de ensino público fosse ampliada sem perder qualidade, e fosse mais adequada aos tempos novos sem perder seu benéfico contato com a cultura clássica, acredito que não estaríamos hoje, como estamos, entre os piores países do mundo, em matéria de ensino.
O positivismo, tão justamente ridicularizado nos meios acadêmicos, deixou, entretanto, suas marcas, que espíritos argutos facilmente reconhecem… inclusive no terceiro dos “ismos”, o marxismo, que mais do que os dois primeiros, ainda marca presença nos meios acadêmicos. Na verdade, para usar a expressão metafórica de “Poeta de São Paulo”, engessa e fossiliza muitas inteligências.
Ora, o assunto da escravidão, proficientemente tratado por Thornton em seu livro, é por excelência “feudo” de historiadores de orientação marxista que nunca se libertaram (se é que poderiam libertar-se) de seus pressupostos economicistas e deterministas, de seu materialismo, de sua visão dialética, de suas “certezas objetivas”, de suas “visões globais” do processo histórico. A meu ver, o grande mérito de Thornton foi duplo: de um lado, apesar de sua formação marxista, ampliou enormemente os horizontes de sua análise; de outro lado, corajosamente, enfrentou ideias consensualmente admitidas expôs com imparcialidade as conclusões a que chegou. O resultado é que produziu uma obra que se tornou referência obrigatória para quem queira estudar o drama do escravismo nos tempos modernos.
Vejamos agora neste fim de artigo (e de série de artigos), o que, no marxismo, o aproxima de modo assaz notório do positivismo. Gostaria, desde logo, afirmar que li Marx (não sua obra completa, mas boa parte dela), li alguma coisa de Lênin e li boa parte da obra de Gramsci – que a meu ver foi pensador marxista muito mais profundo e original que o próprio Marx. Posso dizer, portanto, que conheço razoavelmente o assunto e não critico o marxismo sem conhecimento de causa. Sobre o positivismo, minhas leituras são mais vagas e genéricas, mas mesmo assim estou certo de conhecer o suficiente para poder exprimir meu pensamento a respeito.
Têm profunda relação o positivismo (que no final do século XIX era cortejado por muitos como a grande filosofia do futuro) e o marxismo. Ambos têm em comum o evolucionismo, o determinismo, e a simpatia por regimes ditatoriais. O positivismo, de que Euclides da Cunha, em “Os sertões”, dá exemplo frisante, admite a evolução da sociedade, nas três famosas fases (o estado teológico, o metafísico e o positivo, numa tríade que, sem dúvida, tem algo de dialético). Essa evolução, na ótica positivista, é incoercível, ou seja, é estabelecida por regras fixas e imutáveis, predeterminadas. Nega, portanto, a liberdade plena dos homens e das sociedades.
Igualmente é evolucionista e determinista o marxismo, com sua teoria do salto quantitativo constante e do salto qualitativo brusco, e com sua tese de que é ilusória a autonomia e a liberdade da superestrutura, porque ela é infalivelmente determinada pela infraestrutura econômica. Esse duplo elemento de semelhança entre ambas as doutrinas não parece ter chamado a impressão de historiadores marxistas, que fazem questão de se diferenciar dos positivistas destacando que estes focalizam sobretudo os grandes personagens da história política, em detrimento dos aspectos econômicos e massivos, e de uma análise baseada nos modos de produção (a asiática, a feudal, a capitalista e, por fim, a socialista) como única explicação possível do processo histórico. Esses, entretanto, são apenas elementos secundários de ambas as filosofias e ambas as historiografias, a positivista e a marxista.
O mais importante elemento de ambas, o ponto por onde elas se aproximam muito, é que ambas são evolucionistas e deterministas, e enquanto tais negam o livre arbítrio, a liberdade plena do indivíduo. Para ambas, a História segue um curso forçoso, um curso linear pré-determinado.
Por fim, é impossível negar que tanto o sistema filosófico de Comte como o de Marx se caracterizam por uma incontenível tendência para estabelecer e favorecer regimes ditatoriais. São múltiplos os exemplos disso na História e na atualidade.
Licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro da Academia
Portuguesa da História e dos Institutos Históricos e Geográficos do Brasil, de São Paulo e de Piracicaba.