Aldo Fornazieri
Com a divulgação das últimas pesquisas do Datafolha, as notícias não são boas para o governo. As pesquisas mostram que o Congresso e o STF melhoraram suas respectivas avaliações positivas e que as avaliações negativas caíram. Já, com o governo, ocorreu o contrário: a avalição negativa subiu e a positiva caiu, aproximando as duas linhas.
O resultado alcançado pelo governo chega a ser paradoxal, pois os indicadores da economia melhoraram. O indicador de desemprego oscilou de 7,5% para 7,8%, é verdade. Mas isto é normal no período, pois sinaliza apenas uma maior procura por emprego. Mesmo assim, a taxa de desemprego para o trimestre que fecha em fevereiro é a menor desde 2015, quando foi de 7,5%.
A inflação de 2023 fechou em 4,62%, situando-se dentro do intervalo da meta. Por esses meses de final do verão e início do outono existe uma inflação de alimentos sazonal. Ela não justifica grandes descontentamentos. Logo mais o preço dos alimentos, principalmente de hortaliças, voltará a baixar.
Em 2023, a renda do trabalho cresceu 11,7% e o número de empregos com carteira assinada continua acima dos 100 milhões. Tanto o Banco Central quanto o Ministério da Fazenda elevaram para cima as expectativas de crescimento do PIB para 2024. A política fiscal implementada pelo ministro Haddad vem gerando um horizonte de previsibilidade, fator que poderá melhorar os investimentos. Com exceção das barbeiragens de setores do governo em relação às empresas estatais, não há sobressaltos a vista.
Se do ponto de vista de desempenho da economia não existem razões significativas que justifiquem a queda na avalição popular, então as explicações devem ser procuradas em outros lugares. Esses lugares têm uma convergência-síntese definida pelo conceito de hegemonia.
É certo que o conceito de hegemonia é polissêmico, mas aqui será entendido na acepção estrita, relacionado à capacidade de um governo ou partido conferir direção e sentido à sociedade ou a agrupamentos sociais determinados. Com a complexidade, pluralidades e fragmentações das sociedades contemporâneas a noção de que se possa exercer uma hegemonia total deixou de fazer sentido. Considerando os contextos democráticos dessas sociedades, as hegemonias serão parciais, quanto muito, hegemonias de maiorias.
As direções e sentidos imprimidos pelas hegemonias se configuram a partir de atividades orientadas por disputas políticas, ideológicas (incluindo as religiões), de valores e de cultura. As hegemonias comportam também uma base material, principalmente quando são os governos que as disputam. Isto quer dizer: a soldadura política, ideológica, cultural e moral implica que os setores sociais hegemonizados tenham necessidades básicas atenndidas.
Mas as relações entre a direção política, ideológica, cultural e moral com as satisfações materiais não são mecânicas. Dependem das conjunturas, das capacidades persuasivas e de comunicação dos atores que disputam e das perspectivas de futuro.
É justamente aqui o lugar onde o governo e as esquerdas estão perdendo terreno. O governo se comunica mal e, em boa medida, se comunica mal porque não tem um projeto claro, uma perspectiva de futuro capaz de persuadir e provocar engajamentos sociais. Comunicar aquilo que é feito é necessário, mas insuficiente. O governo e as esquerdas não disputam valores. Parece que não têm ideologias, narrativas capazes de conferir algum sentido às existências humanas.
O governo e as esquerdas se limitam a apresentar receitas de políticas sociais. É pouco para persuadir. Os seres humanos hoje são assaltados por perspectivas apocalípticas. Isto, de certa forma, sempre existiu. Mas hoje essas perspectivas parecem ser mais factíveis. São conjunções das tragédias ambientais e dos abalos existenciais provocados pela pandemia. Pesquisas mostram que os jovens são os que mais temem um fim dos tempos.
Esse mundo assustador empurra as pessoas para a busca de refúgios e acolhimentos espirituais, por busca de transcendências. Vivemos uma revanche de Deus e das religiões. Para driblar o sentido trágico da existência, as pessoas buscam um reencantamento espiritual, cultural ou na natureza. Esse reencantamento não é racional, não está no automóvel, na geladeira ou no consumismo.
Os líderes e governantes se aproximaram de igrejas e religiões. Trump e Putin são exemplos exponenciais desse movimento. As extremas-direitas se apegam a Deus, família e toda sorte de valores tradicionalistas.
O governo e as esquerdas nada conseguem dizer sobre isso. Tome-se o caso dos evangélicos. A estratégia da extrema-direita religiosa adota por base o Antigo Testamento. Há um sentido desviante do cristianismo. Do Novo Testamento promove evidentes distorções, interpretações heterodoxas e arbitrárias da Bíblia para abraçar estratégia da guerra espiritual. As batalhas do bem contra o mal, contra demônios e satanases, terminam por resvalar para claros fins políticos e de disputa de poder.
O que o governo faz? Procura os dirigentes políticos dos evangélicos, negocia concessões de isenções fiscais às igrejas e emendas parlamentares. Nem o governo e nem as esquerdas são capazes de compreender a base estratégia do Antigo Testamento e a noção de guerra espiritual extraída da carta de Paulo aos Efésios. Assim, não conseguem entrar no debate dos evangélicos, gerando uma incapacidade persuasiva. Uma impossibilidade de disputar a hegemonia. As disputas no âmbito dos evangélicos ocorrem entre uma direita extremada e uma direita moderada, que procura fazer uma leitura mais tradicional da Bíblia.
As batalhas que os grupos e movimentos de extrema-direita (incluindo o bolsonarismo) travam, consistem em disputas de afetos e subjetividades. Junto com a disseminação do ódio, da violência e do preconceito contra inimigos de vários matizes, defendem Deus, a família, o machismo, a homofobia, o racismo e a pátria. Aproveitam todos os episódios, sejam positivos ou negativos a Trump ou a Bolsonaro, para disputar nas redes sociais.
Os democratas nos EUA e as esquerdas no Brasil perdem de forma recorrente as batalhas digitais. Desta forma, os acertos do governo Lula têm escassa sustentação nas disputas políticas das redes e na sociedade. Quando Lula e o governo erram, não são defendidos. A comunicação do governo, ao exemplo das lives de Lula (hoje inativas), não são capazes de gerar engajamentos.
Há um mal-estar entre o governo e a militância de esquerda. Ele não será superado mesmo que a economia continue melhorando. O governo e as direções dos partidos de esquerda precisam gerar projetos, fantasias concretas no dizer de Gramsci, capazes de encantar, de persuadir, de mobilizar, de gerar engajamentos ativos e militantes.
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Aldo Fornazieri, professor da Escola de Sociologia e Política, autor de Liderança e Poder.