Armando Alexandre dos Santos
Continuamos nesta semana a expor e analisar um livro que reputo de grande importância para a compreensão do que foi o tráfico negreiro da África para o Brasil: “A África e os Africanos na formação do mundo atlântico – 1400-1800”, de John Thornton (Rio de Janeiro: Elsevier, 2004).
Como vimos, o autor sustenta que o papel dos africanos, no comércio escravagista, não foi meramente passivo, mas foi também ativo e de certa forma se realizou em bases paritárias, com equilíbrio de forças, entre os traficantes europeus e os potentados africanos que lhes forneciam a mão-de-obra escrava.
Os africanos, por mais numerosos e conhecedores do terreno que fossem, nunca lograram obter vantagens militares sobre navios europeus. Nunca, ou praticamente nunca, ousaram tomá-los de assalto. O mar era o domínio dos brancos. Mas, em sentido reverso, também nunca, no período que Thornton estudou (de 1400 a 1800) os europeus, por mais que dispusessem de armas de fogo e superioridade tecnológica, ousaram grandes investidas no interior africano. Era dos negros, e só dos negros, o domínio do interior da África. Os europeus, pois, necessitavam de “sócios” ou parceiros africanos para capturar os escravos. E os africanos também necessitavam dos europeus para escoarem sua “mercadoria”. Daí não haver, naquele intercâmbio, só bandidos de um lado e só “mocinhos” do outro.
“Meu exame das relações militares e políticas entre os africanos e europeus leva à conclusão de que os africanos controlavam o caráter de suas interações com a Europa. Os europeus não possuíam o poderio militar para forçar os africanos a participarem de nenhum tipo de comércio no qual seus líderes não desejassem se engajar. Portanto, todo o comércio da África com o Atlântico, inclusive o comércio de escravos, tinha de ser voluntário.” (op. cit., p. 48).
A exposição de Thornton é interessante, seu livro se lê de modo agradável e fluente, pois tem um estilo, em certas passagens, que se aproxima do jornalístico. Ele demonstra um conhecimento exaustivo das fontes primárias disponíveis, citando com frequência relatos de viajantes, missionários e outros testemunhos antigos, para ilustrar e embasar suas afirmações. Concretamente, um ponto que para mim foi muito elucidativo, para entender a naturalidade com que os africanos tomavam a escravidão, foi que ela estava profundamente entranhada na mentalidade africana, tanto como a posse material da terra o estava na mentalidade europeia. Havia, mesmo, certo paralelismo funcional entre o escravo, na África, e a terra, na Europa. Ambos eram geradores de riquezas:
“A causa da disseminação da escravidão na África não se encontra, como alguns afirmaram, no fato de a África ser uma região economicamente subdesenvolvida, onde o trabalho forçado não havia sido ainda substituído pelo trabalho livre. Na verdade, a escravidão estava enraizada em estruturas legais e institucionais arraigadas das sociedades africanas, e sua operacionalização diferia muito do modo pelo qual subsistia nas sociedades europeias. A escravidão era difundida na África atlântica porque os escravos eram a única forma de propriedade privada que produzia rendimentos reconhecida nas leis africanas. Em contraste, nos sistemas legais europeus a terra era a principal forma de propriedade privada lucrativa, e a escravidão ocupava uma posição relativamente inferior. … Em razão de sua característica legal, a escravidão era de muitas maneiras o equivalente funcional do relacionamento do proprietário da terra com seu arrendatário na Europa e talvez igualmente disseminada. Nesse sentido, foi a ausência de propriedade de terras – ou, para ser mais preciso, foi a propriedade corporativa da terra – que levou a escravidão a ser tão difundida na sociedade africana.” (op. cit., p. 124-125)
Também não se deve deduzir, do fato de ser corporativa (e de certa forma comunitária) a utilização da terra na África, que sua sociedade fosse igualitária, como imaginam alguns. Era desigual, e muito: “O sistema social africano não era então retrógrado ou igualitário, mas somente legalmente divergente.” (idem, p. 127)
Licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro da Academia
Portuguesa da História e dos Institutos Históricos e Geográficos do Brasil, de São Paulo e de Piracicaba.