Cecílio Elias Netto
Simplificando, digamos civilizar seja – entre os diversos entendimentos – o que torna os sujeitos mais sociáveis. E em formas mais elevadas de um povo. Por enquanto, apenas isso. Pois foi o que aconteceu em Piracicaba no longínquo 1942 – no auge da II Guerra Mundial – quando o mundo todo sofria das carências e transformações. Nossa cidade tinha, então, um prefeito nomeado pelo governo do Estado, Jorge Pacheco e Chaves. Pouco habilidoso em política, mas de educação ímpar, culto, refinado, o douto Jorge definiu a prioridade de sua administração: “Civilizar Piracicaba!” E, para isso, motivos havia.
Vivíamos uma época de profunda transição, conturbada pelos efeitos da guerra. Famílias de imigrantes europeus traziam suas esperanças à nossa cidade. Eram italianos, árabes, japoneses, alemães, judeus com suas características étnicas profundas. Houve um choque cultural, pois a pacata cidade – já definida em suas estruturas socioculturais – passava a conhecer a influência do outro, do diferente. A migração chegava a uma cidade orgulhosa de seus valores culturais, conhecida que se tornara como “Noiva da Colina”, “Ateneo”, “Atenas Paulista”, “Pérola dos Paulistas, “Florença Brasileira”, “Cidade das Escolas”.
Costumes, hábitos enraigados, convivências consolidadas confrontavam-se com o novo. Para a conservadora elite econômico-financeira-cultural da cidade, acontecia como que uma “invasão de bárbaros”. Vai daí o propósito do elitista dr. Jorge: Civilizar Piracicaba. Ou seja, para ele: refinar, reeducar, recuperar e preservar um estado de coisas que lhe parecia intocável. O que ele conseguiu foi aumentar preconceitos e acirrar divisões de classes. E não percebeu que, na realidade, há uma imensa riqueza em migrações humanas, intercâmbio de culturas e de conhecimento.
E atualmente, nesse outro e complexo momento histórico? A era digital mostra-se verdadeira Caixa de Pandora da qual tudo pode sair. Para o bem e para o mal, ela nos alcança a todos, individual e coletivamente. E está evidente não haver, pelo menos até aqui, soluções globais, universais, essa utopia que ainda alimentamos. As buscas passaram a ser grupais, como se a sociedade dataísta – na qual os dados importam mais do que as pessoas – separasse-nos em tribos. Assemelhar-se-iam, então, as cidades, a um amontoado de grupos, não mais a uma comunidade com valores próprios e definidos?
Civilidade, pois, é uma das formas mais elevadas não apenas de um povo, mas de pessoas. Civilizarmo-nos como cidade, agora, é organizarmo-nos para enfrentar uma nova realidade que coloca em xeque quase todo o alicerce em que nos apoiávamos. E indispensável será não cedermos à tola tentação de renunciarmos às experiências históricas que nos definem. Piracicaba tem que atentar para a sua cultura própria. Pois é a que – autocorrigindo-se, atualizando-se – será o instrumental para enfrentarmos os novos desafios.
Antes de mais nada – acredita este escriba – há que se recuperar o respeito perdido. Pois estamos vivendo uma sociedade do espetáculo e do desempenho que, perdendo as noções de decoro e de distanciamento, começa a nos empurrar para uma comunidade de escândalo. A chamada e crescente mídia digital e as redes sociais desconhecem limites. E, dessa forma, o público e o privado misturaram-se. A pessoa humana, vista através de câmeras e de lentes, vai-se tornando apenas imagem. E, portanto, objeto.
Civilizar Piracicaba torna-se sonho que, no entanto, tem um pressuposto: cada cidadão civilizar-se a si mesmo. Respeitar e respeitar-se. Seria o recomeço.
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Cecílio Elias Netto, escritor, jornalista, decano da imprensa piracicabana