Armando Alexandre dos Santos
Recordo ter assistido em 2011, na USP, a uma conferência de um doutor em História, Prof. Marcos Baccega, cujo nome tem sonoridade italiana, mas é alemão. Provavelmente deve descender de alguma família que foi da Itália para os domínios do Sacro Império, no Norte da Europa, ainda na Idade Média, e por lá ficou, germanizando-se culturalmente. Existem numerosas famílias nessa mesma condição. O fato é o Prof. Baccega é inteiramente alemão de mentalidade e cultura. Ao abrir sua conferência, ele disse, de modo muito bem humorado, que como todo estudante alemão de filosofia, ele também, desde jovem, tinha como objetivo na vida criar um sistema filosófico novo, que explicasse todo o Universo… O público riu, da brincadeira com que o professor iniciou sua fala, pois havia muito de verdade naquilo que estava dizendo. De fato, na história da Filosofia não foram poucos os alemães que tiveram essa pretensão. Kant, Marx, Nietzsche, Hegel, Heideger, Schoppenhauer, entre muitos e muitos outros… Entre esses, sem dúvida se pode inserir Ludwig Wittgenstein (1889-1951), que foi discípulo e sofreu muita influência, sobretudo no início de sua vida intelectual, de Bertrand Russell, um filósofo inglês que, quando eu era jovem, estava muito em voga. Lembro-me bem de um professor que tive, ainda no curso ginasial, que se dizia discípulo de Bertrand Russell e fazia questão de citá-lo muitas vezes, especialmente sobre questões linguísticas.
Não vou me estender aqui sobre a biografia de Wittgenstein – aliás, rica, cheia de episódios curiosos, desde suas origens genealógicas, com a inserção social de sua família nos círculos da alta burguesia vienense, as preocupações artísticas e culturais que caracterizavam os membros de sua família e também o próprio Ludwig, as relações artísticas, científicas e empresariais que este cultivou na Áustria e mais tarde na Inglaterra, sua participação nas duas Guerras Mundiais etc. Tudo isso é muito interessante, mas ficaria fora do escopo desta atividade.
“Tractatus logico-philosophicus” foi o nome que Wittgenstein deu a seu primeiro livro, que apesar do título latino foi escrito em alemão e publicado vez primeira em inglês, em 1921. Com esse livro, precisamente, o autor, bom alemão que era, esperava resolver de uma vez por todas com as indagações filosóficas. Resolver como? Simplesmente, deslocando o foco do pensamento, das questões filosóficas em si, para as questões referentes à linguagem. Na ótica de Wittgenstein, não existiam problemas filosóficos propriamente ditos, problemas genuinamente filosóficos, mas era no campo da análise semântica que tudo se poderia resolver.
Wittgenstein se utilizou da metodologia então proposta por uma corrente filosófica constituída por estudiosos que, a partir da Matemática, passaram para o estudo da Filosofia em geral e se concentraram no papel da Linguagem, na expressão do pensamento filosófico, desenvolvendo a chamada Filosofia Crítica da Linguagem. Os dois mais notórios pensadores dessa corrente, mais velhos do que Wittgenstein, eram o alemão Gottlob Frege (1848-1925) e o inglês Bertrand Russell (1872-1970), aos quais se juntaria o austríaco Wittgenstein, formando todos uma tríade. A abordagem dos três é, pois, caracteristicamente interdisciplinar, pois parte da Matemática, aprofunda-se na Filosofia e, à procura de soluções, investiga a Linguística – podendo, ainda, ser o seu método estendido ao estudo de outras disciplinas.
O que caracteriza essa corrente é, em primeiro lugar, a importância que atribui à Linguagem, como meio de expressão dos conceitos e, portanto, da formulação do pensamento; e, em segundo lugar, a metodologia própria que desenvolveram para analisar a Linguagem.
A análise da Linguagem, propugnada por esses pensadores, consiste na decomposição das expressões linguísticas, de modo a procurar deixar sempre claro em que medida os que as emitem são entendidos, pelos que as recebem, precisamente com o mesmo significado, a mesma dimensão conceitual, os mesmos conformes etc. Ora, com muita frequência há desajustes quase imperceptíveis, entre os sentidos da “expressão de partida” e o da “expressão de chegada”. Esses minúsculos desajustes estão na origem de ambiguidades e de descompassos conceituais cada vez maiores, que conduzem quase inevitavelmente aos desacordos filosóficos mais profundos.
Na ótica desses pensadores, entretanto, os grandes e permanentes problemas filosóficos podiam e deviam ser transportados para uma outra área do conhecimento: a Semântica. Em outras palavras, desde que acertada, de comum acordo, a terminologia, tudo se resolveria.
Na prática, porém, a Lógica, tal como geralmente é considerada, mostra-se insuficiente para permitir chegar sempre a consensos conceituais entre emitente e recebedor das mensagens. Entrando na análise minuciosa do linguajar humano, e nas suas relações com a lógica, Wittgenstein mostra que a linguagem tem uma “lógica” peculiar sua, diferente daquilo que chamamos habitualmente de Lógica. De modo que o descompasso entre as mensagens de partida e de chegada é quase inevitável. Em todos os níveis, em todos os momentos, a propósito de todos os assuntos, sempre surgem essas ambiguidades. Por outro lado, não é tudo o que a linguagem humana pode exprimir e comunicar convenientemente ao interlocutor. A lógica da linguagem é limitada, já que a própria linguagem é condicionada pelos limites impostos pelo mundo. Há coisas inefáveis, que não se dizem, se mostram. E o vê-las, ou não as ver, ou vê-las de um modo ou de outro, depende do interlocutor, mais do que da capacidade expressiva – seja pela linguagem, seja pela “metalinguagem” – do emitente. Isso conduz, quando aplicado ao pensamento filosófico lógico, a contínuos contrassensos. Em outras palavras, chega-se, pelas vias do raciocínio lógico à formulação de proposições que constituem verdadeiros contrassensos.
Deve-se ter presente que a publicação do Tractatus marcou a primeira fase do filósofo Wittgenstein. Este, porém, prosseguindo seu labor intelectual, começou a ver falhas no seu sistema, nas décadas seguintes. Muito honesto intelectualmente, passou os últimos anos de sua vida criticando o que escrevera no Tractatus. Deixou essas críticas consignadas numa obra postumamente publicada, com o nome de Investigações Filosóficas. Essa obra marca a chamada segunda fase de Wittgenstein, a fase de sua autocrítica.
Em princípio, merece todo o respeito um autor que tem a honestidade intelectual de se questionar a si próprio e a humildade de “dar a mão à palmatória”, reconhecendo que havia se enganado e procurando, por amor ao que entendia ser a verdade, corrigir o que antes escrevera. Mas o fato é que o pensamento de Wittgenstein que se estuda e se toma em consideração, hoje em dia, nos cursos de História da Filosofia, ainda é o Wittgenstein do Tractatus, e não o das Investigações. É realmente pena!
Licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro da Academia
Portuguesa da História e dos Institutos Históricos e Geográficos do Brasil, de São Paulo e de Piracicaba.
Frase a destacar: Na ótica de Wittgenstein, não existiam problemas genuinamente filosóficos, mas era no campo da análise semântica que tudo se poderia resolver.